Havia uma semana que Pedro se hospedava na casa de Vera e as diferenças culturais apareciam aqui e ali, mas quando Vera ouviu aquele garoto, vindo do outro lado do mundo pra intercâmbio em sua cidade, chamar a atenção de seu irmão caçula, começou uma discussão que faria Pedro pensar veramente a respeito da mentira e da cultura.
O pequeno Brumo chegara dizendo que sabia voar. Pedro, em tom de brincadeira, disse que mentir fazia crescer o nariz. Vera perguntou como podia ser isso. Pedro explicou que era uma forma de desestimular as crianças de mentirem. Vera perguntou por quê. Pedro disse, ué, simples, mentir é pecado. Vera pediu explicações sobre o que é pecado. Pedro disse que quem mentisse poderia ir para o inferno. Vera quis saber o que era inferno. Pedro disse que era o lugar horrível para onde iam as pessoas más depois que morriam. Vera inquiriu por que seu irmão teria se tornado mau ao dizer que sabia voar e também, como Pedro sabia que as pessoas más iam pra tal lugar.
Pedro percebeu que começava a sentir dificuldades em responder a coisas que ele nunca havia questionado, então tentou encerrar a questão dizendo que todos sabiam que mentir era errado. Vera disse que não sabia e perguntou por quê. Pedro disse que era porque se as pessoas quisessem ter respeito e confiança dos outros não deviam mentir. Vera disse que confiava em seu irmão, que mentia, em seu pai e em sua mãe, que mentiam e nela própria, que também mentia e perguntou se Pedro não confiava neles, agora que sabia que mentiam. Pedro disse que confiava sim. Vera perguntou se Pedro não temia ir para o inferno agora que constatara que o nariz de Bruno não crescera, logo, tinha sido uma grande mentira.
Pedro, pela primeira vez pensou, que logo na primeira vez que fora desestimulado a mentir, tinha sido através de uma mentira contada por um adulto. Vera perguntou se não mentir era uma instrução que valia para todos ou apenas para alguns. Pra todos, disse Pedro. Vera perguntou se no país de Pedro todos seguiam essa lei. Pedro pensou um pouco e disse que parecia que, à risca, ninguém seguia. Vera perguntou o que, de fato, acontecia com as pessoas que mentiam, no país de Pedro. Pedro disse que não sabia. Vera perguntou se Pedro mentia. Ele pensou e disse que sim. E o que você sente quando mente? O menino olhou pra cima, depois pra baixo e disse, culpa. Vera disse que devia ser porque era proibido.
E se mentem para você? Quis saber a menina. Acho que fico triste, decepcionado, ou tenho ódio… deve ser porque é proibido, continuou Pedro, intrigado com o que dizia. Aqui vocês não tem esses sentimentos, perguntou para Vera. Não por esse motivo, disse Vera. Sabemos que a mentira é natural do ser humano e apenas evitamos prejudicar um ao outro, sem tornar abominável algo sem o qual não se pode viver. Aceitamos que as pessoas mintam e ficamos livres de carregar a culpa, o ódio e a hipocrisia, além de raramente sermos surpreendidos ou nos decepcionarmos com os outros, já que sabemos que todos tem o direito de mentir.
E por que todos mentem, perguntou Pedro. Ah, por cautela, por auto preservação, por educação, por conveniência do momento, mas o fato de aqui nós termos o direito de mentir não diminui a importância que damos à honestidade, à sinceridade e à busca pela verdade. Pedro se lembrou do dia em que disse que sua avozinha estava linda com bobes nos cabelos ralos, do dia em que se juntou à torcida adversária gritando “eô – eô, tricolor, tricolor” para não apanhar, do dia em que falou ao pai que tava tudo bem ganhar as cuecas ao invés do carrinho. Pedro se lembrou dos políticos que falavam alto para abafar o cheiro das mentiras e dos milhões que acreditavam neles, porque, se era pecado mentir, jamais mentiriam. Aceitavam tudo como verdade, sem questionar.
Pedro se lembrou de padres, de pastores, de poetas, de jornalistas, profetas,de médicos, de advogados, de vendedores… pensou em vender dores, nos grandes e nos pequenos executivos, nos pais mais rígidos e nos pais liberais, nos esquerdistas, nos direitistas e também nas mentiras que foram verdades por muito tempo, como quando o planeta era sustentado por elefantes que viviam no casco de uma tartaruga gigante e pensou em quantas verdades ainda poderiam virar mentira. Uma tinha virado naquele exato instante, a verdade era que a mentira não era mais pecado. Então Vera disse: É mentira, aqui não mentimos não… e riram.