Seu Gualberto tinha 75 anos quando Dona Diva morreu e Cassandra apareceu em sua vida.
Era inegável que Cassandra amenizava a dor da viuvez e Gualberto foi se apegando muito ao carinho, ao olhar penetrante e ao calor daquele corpo jovem e cheio de dizeres que Cassandra gostava de mostrar pra ele, então se sentiu culpado por não estar sofrendo o suficiente pela morte da esposa, depois de um casamento de 50 anos.
Quando Gualberto me procurou, Diva tinha morrido há 7 dias e Cassandra acabara de chegar. O velho senhor marejava os olhos, quando qualquer detalhe em seu relato sobre os problemas de Cassandra, trazia de volta a lembrança da Diva. Cassandra era esguia, olhos muito sedutores, preta, linda, muito jovem e tinha pulgas e diarreia.
Na semana seguinte, quando Cassandra veio para o retorno, já livre das duas queixas que levaram Gualberto a me procurar, quase não se notava sofrimento nos olhos do velho, que não desgrudavam da gatinha e estavam sempre acompanhados de um sorriso bobo. Cassandra alegrava qualquer ambiente e bagunçava meu consultório sem a menor culpa ou compostura. Os olhos doces de Gualberto acompanhavam o caminhar elegante de Cassandra e por vezes se erguiam até o infinito e marejavam.
Fui me acostumando àquelas presenças complementares, que pra mim, só eram possíveis juntas, num primeiro ano de vida de Cassandra, repleto de visitas para vacinas, orientações gerais, sorrisos, risadas e olhos marejados e relatos de estripulias de gata.
Gualberto quis brigar comigo quando indiquei a ovariosalpingohisterectomia de Cassandra. Disse que ela era um membro da família e que jamais faria aquilo com ela. Os meses se passaram e tanto Gualberto, quanto a família, concordaram que não dava mais pra conviver com uma gata eternamente (era o que parecia pra eles) no cio. Enfim, levaram a Cassandra pra ser castrada, dizendo que deviam ter feito antes.
Vi Cassandra crescendo, amadurecendo e envelhecendo nas raras visitas periódicas para vacinas, orientações gerais, sorrisos, risadas e contação de causos que a boa saúde de Cassandra garantira por todos aqueles 16 anos. Em todas as visitas, Gualberto sempre encontrava um jeito e um momento de olhar para aquele ponto, que ficava à meia altura, na parede direita do meu consultório e ligava ao infinito, para dar sua tradicional marejada nos olhos embaçados, pela lembrança nítida de Diva.
No último mês, os olhos de Gualberto marejaram como nunca. Os meus, como sempre, marejaram um pouco. Os de Cassandra, foram perdendo o brilho. Cassandra precisou de cuidados e intensivos. Adquiriu insuficiência renal crônica. Seu Gualberto era transplantado renal e sabia a gravidade do quadro. Não amenizei a gravidade, fui claro. Amenizei o sofrimento de Cassandra até que a morte a levasse de forma natural… ela sempre nos leva, independente da forma.
Seu Gualberto, aos 91 anos, debilitado e frágil, foi ao consultório me contar que Cassandra partira tranquila como um anjo. Ele agradeceu, me abraçou e chorou muito. Sei que um pouco daquelas lágrimas eram pra Diva, outra parcela pra Cassandra e outra ainda parecia ser pela injustiça das coisas dessa vida. Chorei um pouco. Pensei um pouco. Pedi desculpas à vida pelo Seu Gualberto, que estava chateado com ela, movido por forte emoção.
Sendo veterinário, entende-se que este é o ciclo da vida e isso não faz dela uma experiência menos maravilhosa. Ter conhecido e aprendido com Gualberto e com Cassandra são alguns dos muitos motivos de pura gratidão à vida. Pensei se era preciso ser veterinário para ver assim e achei que não era. Enquanto abraçava Gualberto, senti a morte por perto… restava saber com qual de nós ela flertava. Na dúvida, vim viver um pouco mais.