Acordamos muito cedo, eu e o Jefson. Pegamos o coletivo lotado. Tem muita gente precisando trabalhar nesse mundo. Deixo o Jefson na Creide às 5:30 e tomo outro ônibus lotado.
Chego na casa dos patrões às 7:00. Logo se despedem, que vão trabalhar pros patrões deles também. Pelas 8:00, o Júnior acorda e pede seu leite. Lembro que agora a Creide está deixando o Jefson na creche.
Começa a chover e fico preocupada. A creche tem goteiras e paredes rachadas. Um córrego que passa em frente e serve de esgoto a céu aberto, frequentemente transborda juntando seu lixo ao lixo que se acumula pela rua de terra. A água, volta e meia, invade a creche.
Esqueço minhas preocupações pessoais e volto ao trabalho quando o Júnior grita pra eu ligar a televisão. Deixo a criança na frente da tv e vou arrumar a casa. Casa arrumada, Júnior hipnotizado, começo a preparar o almoço. Lembro que o Jefson não gosta da merenda da creche. Gosta da minha comida. Mas quem come a minha comida, de cara feia, é o Júnior. Coloco o menino na frente da tv novamente e vou lavar a louça.
Para de chover e fico olhando o tempo. Júnior me interrompe pedindo a sobremesa, sorvete. Lembro que preciso levar o Jefson pra chupar picolé no domingo. Ele sempre diz que o pai, antes de sumir, o levava pra chupar picolé e eu nunca levo. Penso nisso lambendo a colher com que peguei o sorvete pro Júnior.
Às 15:00 brigo pro Júnior sair da frente da tv e descer pro playground. Lá tem outras crianças e outras empregadas. É bom para colocar as fofocas em dia. Percebo que nossos patrões têm vidas muito parecidas, só mudam os nomes. Percebo que nós, as empregadas, também só mudamos os nomes. Mas nossas vidas e as vidas dos nossos patrões são totalmente diferentes. Acontece que por alguns segundos vejo as vidas das empregadas e dos patrões como exatamente iguais. Sinto medo de ver assim e corro voltar a ver que são mesmo diferentes.
Me acalmo vendo o Júnior brincando, com seus 5 anos. Briga com o amiguinho por causa de um carrinho. Jefson também tem 5 anos. Gosto mais do jeito do Jefson que do Júnior, mas fico com o Júnior, que os pais dele precisam trabalhar. Penso que se o Jefson tivesse um pai, talvez eu pudesse ficar mais tempo com ele. Penso que se não tivesse acontecido o que aconteceu com os irmãos do Jefson, talvez eles pudessem me ajudar um pouco. Penso em largar este emprego pra poder ficar mais tempo com o meu filho. Rezo pra tirar esse pensamento da cabeça, que ele me dá medo. Deus me ajuda a esquecer isso e me lembra que o Jefson depende desse meu emprego.
Às 17:00, subo pra dar banho no Júnior. Sei que ele não vai querer. Sei que vai me chamar de preta e de pobre. Lembro que a Creide deve estar pegando o Jefson na creche. Não ligo pros xingamentos nem pros tapas do Júnior. Faço meu trabalho pensando que o Jefson gosta mais de banho que o Júnior, mas eu dificilmente dou banho no Jefson, só quando não falta água de domingo.
Preparo o lanche do Júnior. Sanduíche e vitamina. Ele joga no chão e pede sorvete. Lembro que o Jefson não tem lanche. A Creide dá a janta dele perto das 19:00. Até lá ele brinca na rua com os filhos da Creide.
Coitada da Creide, não tem emprego desde que o filho mais velho foi pra… bem, eu continuo chamando de Febem. Ela ficou mal. Depois teve o outro menino que sumiu e nunca apareceu. Sorte que ela ainda tem esses dois, que agora devem estar cuidando do meu menino enquanto a mãe prepara o jantar. O marido da Creide também deve chegar para jantar. Ele também está sem serviço, então janta e volta pro bar. Ele não é o pai das crianças, mas gostava delas como um pai, no começo.
Coloco o Júnior pra ver televisão no quarto dele, ligo a tv na sala e fico vendo os ensinamentos do pastor. Lembro que fiquei devendo o dízimo do mês passado. Este mês vou pagar em dobro.
Às 19:30 o patrão chega e me encontra sentada no sofá. Me ergo rapidamente.
_ Que é isso, não foi ainda? Sua patroa não chegou? Cadê o Júnior?
Digo que o Júnior está bem, no quarto dele e que a patroa não chegou ainda não. Ele pega o controle, muda de canal e ocupa o meu lugar no sofá.
_ Tá bom, então. Já pode ir agora.
Digo que preciso receber.
_ Ah, tudo bem, espera sua patroa na cozinha.
Espero na cozinha… sou boa nisso. A patroa abre a porta às 20:30.
_ Não foi ainda?! Que houve? Depois vai querer hora extra!
Não, não. É que precisava receber meu pagamento, digo.
_ Seu patrão não te pagou? Cadê o Júnior?
_ O patrão pediu pra eu esperar a senhora pra receber. O Júnior está vendo tv no quarto dele.
_Vou te contar, este seu patrão, viu!
Ela passa pela sala, fala oi pro marido e segue para o seu quarto. A acompanho enquanto cai na cama, liga a tv e me pergunta por que não fui ainda.
O pagamento, falo sorrindo.
_ Ai, te pago amanhã! Não to com cabeça pra isso agora.
Informo que preciso do dinheiro pra pegar o ônibus e me estende uma nota sem olhar no meu rosto.
_ Toma, tchau!
Agradeço, me despeço e grito tchau pro Júnior. Ninguém responde.
Enquanto espero o ônibus vejo uma manifestação, mais abaixo na rua. Jovens protestam não sei contra o quê. Penso que deviam estar trabalhando ao invés de reclamar. A polícia bate, é o trabalho da polícia.
O ônibus chega. Consigo me sentar e agradeço a Deus por isso. Vou orando e não reparo nas pessoas nem na paisagem.
Chego em casa às 22:30. Encontro a Creide dormindo no sofá, tv ligada, Jefson dorme ao lado dela. Acordo a Creide, agradeço, pago o combinado e me despeço da amiga.
Levo o Jefson pra nossa cama e beijo sua testa. Ele não acorda. Penso que a Creide ainda precisa pegar condução pra chegar em casa, coitada.
Me jogo no sofá e mudo de canal. O pastor é enfático ao dizer que com trabalho, dízimo e fé em Deus é que se chega lá. Volta a chover. Fico preocupada e ora para que não tenha enchente. Durmo na frente do pastor.
Acordo sem me lembrar dos sonhos. Corro acordar o Jefson que já estamos atrasados. Acordamos muito cedo, eu e o Jefson. Por alguns segundos penso que acordamos tarde demais…