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Carnaval: espaço de todos

Guilherme Boneto

Nos vídeos acima, a mesma bateria ensaiando e durante o desfile da escola de samba Leão da Vila (Valinhos/2009)

Eu amo carnaval.

Passei a minha infância acostumado a participar dos ensaios da escola de samba Leão da Vila, em Valinhos, minha cidade. Pequena, a escola ensaiava no mesmo local onde preparava suas fantasias e seus carros alegóricos, e era um imenso prazer vê-la se erguendo e se preparando para o dia do desfile. Aqui, temos o costume de cancelar a festa quando chove – e era para mim uma terrível frustração quando isso acontecia, bem como o era quando, acompanhando a apuração, eu notava a iminência da derrota, o que invariavelmente me levava às lágrimas. Valinhos não realiza seu carnaval, um dos mais tradicionais da Região de Campinas, desde 2012, mas ainda que fique 50 anos sem fazê-lo, nenhuma dessas sensações vai jamais me abandonar. Estar na concentração aguardando o início do desfile, ouvir o grito de guerra, o som da bateria, o início do choro do cavaco, cantar o samba-enredo, são sensações impagáveis, arrepiantes, detalhes entre muitos que fazem a existência valer um pouquinho mais a pena. Enquanto nós vivemos a era do individualismo e do egoísmo no mundo inteiro, as escolas de samba brasileiras exaltam a comunidade, em seus refrãos e em seus barracões, no trabalho em conjunto para levar à avenida uma bela obra. O carnaval reúne numa mesma agremiação homens, mulheres, negros, brancos, pardos, amarelos, indígenas, deficientes, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, travestis, brasileiros, estrangeiros… Todos cabem ali dentro. Entre as alas e as alegorias só falta espaço para o preconceito.

E eu amo ter o samba correndo pelas minhas veias.

No desfile da última sexta-feira, as agremiações de São Paulo desfilaram sob chuva, o que levou ao delírio os cheios-de-ódio. Primeira a entrar na avenida, retornando do grupo de acesso e cheia de garra, a escola de samba Leandro de Itaquera foi ao Anhembi sob chuva de granizo, o que atrapalha a escola de forma geral – é óbvio. O trabalho da comunidade inteira, todo o amor posto na preparação daquelas fantasias, daqueles carros, tudo se fazia em água, exceto a vibração e o empenho daquela comunidade, bem como todas as outras que foram à avenida debaixo de chuva. O temporal é uma condição climática, imprevisível, inconstante e impiedosa, e não se dará jamais ao trabalho de perguntar às pessoas se vem ou não em momento oportuno. O que me assusta não é a chuva, porque o calor do samba não diminuiu com o gelo que caía em meio ao aguaceiro – quem assistiu pela televisão pôde acompanhar. A raiva das pessoas é o que me faz ter enjoo.

Argumentos contra a festa não faltam, mas todos eles são facilmente derrubáveis. É fato que o Brasil para por quatro dias enquanto é carnaval, porém não vejo qual é o problema disso diante de todos os outros dias extenuantes de trabalho – uma parada para descansar é sempre muito bem-vinda. Durante as festividades de fim do ano, milhares de empresas fecham as portas no meio de dezembro e só retornam depois do ano-novo, e pasmem: não há essa mesma indignação seletiva com quem faz essa pausa para descansar, ninguém relaciona o feriado ao atraso do país e nem se indigna diante dos prejuízos à economia. Por que não? Fala-se na quantidade “enorme” de feriados que nós temos – países como Noruega, Finlândia, Dinamarca e Suécia têm mais descansos ao longo do ano do que nós, mas acho que eles podem, porque estão na Europa.

De igual modo, os recursos públicos investidos dão retorno à prefeitura – São Paulo, que todos os anos organiza desfiles de qualidade impecável, investe nas escolas de samba, porém tem benefícios diretos à economia, em setores como hotelaria e comércio. A festa emprega ainda milhares de pessoas, nos barracões das agremiações – algumas desfilam com mais de quatro mil integrantes, o que requer uma preparação impressionante – e nos fornecedores de matéria-prima. O carnaval faz muito bem à economia, obrigado.

A questão central é que as pessoas não respeitam os gostos alheios. Eu sou um cara que detesta futebol, não assisto na TV, não tenho time do coração, nem nada disso aí. Meu problema não é com o esporte, mas com o fanatismo, com as centenas de mortes que acontecem com absurda frequência em brigas de torcidas, no ódio à bandeira de cor diferente. Em determinado momento da minha vida, eu decidi não compactuar com isso. Longe de mim, porém, torcer para que caia um raio em campo numa final de campeonato – eu quero mais é que todos joguem e sejam felizes, em paz. Por que tanta raiva? Não consigo vislumbrar.

Só posso concluir que as pessoas gostariam que todos fossem como elas no mundo, sem perceber como tudo seria chato se isso acontecesse de verdade. Esbravejar contra os gostos dos outros é uma prática lamentavelmente comum em tempos de redes sociais. Talvez as pessoas pensem que, no final das contas, posicionando-se de modo contrário a quem cai na folia elas parecerão mais intelectualizadas. Como se enganam… Só parecem mais e mais ressentidas e cheias de ódio.

É uma delícia ser do samba. E se você é um desses cheios-de-raiva, experimente parar de reclamar no Facebook e caia na folia – o som dos tamborins e chocalhos vai fazer de você uma pessoa mais feliz.

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