-Sempre gostei de futebol. Assisti a todas as copas do mundo, de 1978 até 2014, respondeu o velho à pergunta da neta.-Nossa! E de qual o vovô gostou mais?
-Ah, da de 2014! A resposta veio rápida e vigorosa como um petardo do Nelinho.- E por que, vô, o que aconteceu nessa copa?
– Porque ela não aconteceu. Foi uma copa nada igual as outras. A única e verdadeira “Copa do Mundo”. A copa da zebra, do improvável, em que a seleção mais humilde venceu uma outra muito poderosa. A partir dessa copa, o jogo foi todo repensado.
-Aí mudaram as regras, vô?
-Mudaram muito! Vou te contar como foi a copa que vi: Na época o futebol havia se tornado um negócio extremamente lucrativo, e nada podia ser extremamente lucrativo sem ter que rapinar o que pertencia a outros.
-Como assim, pertencia?
-Naquele tempo as pessoas viviam e lutavam para ter coisas. Acreditavam mesmo que possuíam coisas e até que possuíam outras pessoas. Quem tivesse mais coisas ao seu redor, em seu poder, se sentia feliz, dominava mais pessoas e era idolatrado, odiado ou invejado pelos que tinham menos coisas. As pessoas que tinham menos coisas não percebiam, mas também eram posses dos que tinham mais coisas. Havia também umas poucas pessoas que se colocavam à disposição para cuidar das vidas dos milhões que tinham menos coisas e, por isso, recebiam muitas coisas e muito dinheiro e muito poder.
-Eu ia perguntar o que era dinheiro, mas deixa… vovô, as pessoas não sabiam que iriam morrer e que tudo o que tinham ficaria aqui para ser usado por todos os que ainda não tinham morrido?
-Não e não. As pessoas que tinham muitas coisas nunca acreditavam que iriam morrer. E quando morriam, suas coisas não ficavam disponíveis para todos, mas eram disputadas ferrenhamente apenas por outros que tinham muitas coisas. E dinheiro, minha filha, era um papelzinho que podia ser trocado por qualquer coisa, até por vidas.
-E por que alguns podiam usufruir de tanto e outros não? As pessoas que tinham poucas coisas não reagiam não, vovô? Acho que você tá ficando gagá! Como as pessoas podiam ser usadas sua vida toda, só para tornar mais fácil a vida de uns poucos exploradores e não percebiam que estavam tendo a liberdade roubada, não enxergavam que não estavam vivendo, como não reagiam?
-Elas pouco reagiam, vez ou outra apenas, mas eram logo reprimidas, ou compradas, ou enganadas com festas, ou mortas. É que as pessoas que tinham menos coisas eram educadas para acreditar que nasceram apenas para servir aos que tinham mais coisas, e que depois da morte, se cumprissem direitinho sua missão, a vida seria melhor e mais leve.
-Depois da morte, vovô? E o que acontece depois da morte?
-Ninguém sabe o que acontece aos que morrem, há várias teorias, também sou bem curioso a respeito, mas não sei se é tão importante saber. Mas sabemos sim que a vida que viveram, o que fizeram, o que contaram, o que aprenderam e a quem ensinaram fica como uma continuação da vida deles, um legado para os que nascem.
-Acho que os que nasciam naquele tempo não ficavam muito felizes com o que as pessoas que só pensavam em ter coisas deixavam depois da morte, né vô?
-Minha filha, esta era a vida que conheciam e conseguiam ter muitos momento felizes apesar dela, mas desde bem novinhos eram convencidos de que devia ser assim.
-Vovô, as pessoas eram bobas demais na sua época! O velho riu.
-Talvez, mas veja, se você, por exemplo, ao invés de ter aprendido que as pessoas precisam umas das outras e que devem querer que cada um encontre sua liberdade, faça o caminho de sua própria vida, viva do seu jeito único, conhecendo as diversas opções que a vida oferece, para acrescentar conhecimento a si e a sociedade e que pessoas reprimidas e subestimadas atravancam a liberdade de todos, se você tivesse sido forçada a acreditar que era utópico um ser humano guiar seus próprios passos e gerir sua própria vida, se você tivesse sido informada de que nossos irmãos são perigosos, que devemos superá-los, que precisamos ter coisas, que as coisas agradáveis são proibidas, que não se deve questionar o que está imposto há muito tempo, e que você só será livre quando morrer, será que você não passaria a acreditar nessa história?
-O que é utópico, vô?
-Utopia é um sonho bom, mas inalcançável.
-Então achavam utópico uma pessoa cuidar da sua vida, mas achavam perfeitamente possível uma pessoa cuidar da vida de milhões além da sua própria? Acho que não acreditaria nessa história de jeito nenhum, vô, é tão ridículo!
-É, vê como é difícil mudar o que já está implantado há muito tempo em nossas cabecinhas. Entende o que eu digo?
-Sim, acho que entendo… mas… e a copa?
-Sim, a copa era para ter acontecido num daqueles momentos em que havia alguns grupos insatisfeitos reagindo aqui e ali espalhados pelo mundo todo, porque essa era a realidade mundial, não só aqui do Brasil. Umas pessoas questionavam e reagiam às arbitrariedades, outras pessoas morriam aos milhões, desperdiçando suas vidas entregues aos poderosos possuidores de muitas coisas. As pessoas com poucas coisas eram semelhantes ao carvão que movimenta as locomotivas. Sabe a Maria Fumaça que nos levou à praia outro dia?
-Sei sim, vô, adorei o passeio.
-Então, elas eram usadas até que não servissem mais ou morressem e eram prontamente repostas por outras também disciplinadas a servir de carvão. Mas o trem que morriam para mover, girava apenas em círculos, e os poucos que podiam ver dessa forma foram chamados insurgentes.
-O que é isso, vô?
-Foram as pessoas que não se subordinaram mais ao que achavam errado. Acreditaram que o trem devia levar a algum lugar; não, servir de palácio para uns poucos e de prisão e sepultura para muitos. Os insurgentes estavam muito descontentes com a situação. Seres humanos morrendo em filas de hospitais, comendo refeições podres, morrendo de fome, excluídos, recebendo aquela educação que deseducava e levava a se matarem entre si, a se odiarem e a enxergarem por um ângulo, como você falou, ridículo. Então os insurgentes começaram a difundir a ideia de que não precisava ser daquele jeito. Que as pessoas escolhidas pra cuidar das nossas vidas estavam dominadas pela vaidade e pela cegueira e que o correto era que, ao menos, utilizassem o dinheiro que recebiam para cuidar de nós, cuidando de nós. Que as leis que faziam deviam ser para nos ajudar, não para limitar nossos horizontes, nos arrebanhar, nos aliciar e gerar para eles, poderosos, mais poder e coisas e vaidade e cegueira e continuidade. Os insurgentes passaram a acreditar que ninguém poderia cuidar tão bem da vida de alguém como aquele próprio alguém. Os insurgentes trataram de tentar abrir os olhos dos que estavam sendo usados como carvão. Disseram que não precisava ser assim, que tudo estava ridiculamente errado e não reagir era ainda mais errado.
-Inacreditável que tanta gente tenha vivido escravizada por tanto tempo sem sequer notar, vô!
-É, até que notaram. Apesar de cultivados ignorantes e passivos, alguma consciência vinha crescendo neles, um potencial gigantesco, um bom senso incubado. Então, apesar de, como eu, gostarem muito de futebol, disseram: NÃO VAI TER COPA! Temos outras prioridades!
-Nossa, e o que os poderosos acharam disso?
-Eles não ligaram. Os poderosos acompanhavam a movimentação do alto de seu Olimpo, sabendo que não tinham o que temer, que estavam lidando com ovelhas idiotas, que podiam comprar o insurgente que quisessem no momento que quisessem. Então mandaram construir suntuosos estádios para que a copa e seus bolsos pudessem ostentar um status de primeiro mundo, mais que isso, de um mundo a parte, desigual, injusto, justinho pra eles. Sabiam que poderiam usar a força, como estavam acostumados, da forma mais truculenta possível para abafar opiniões contrárias. Então decidiram que sim, ia ter copa! Decidiram ignorar os apelos do povo e queimar muito mais carvão. O povo, o pobre, o sem coisas, continuava morrendo sem ter podido viver. Mas havia muito, muito povo. Era triste para eles, ver a desigualdade entre seu mundo e o Olimpo. Passaram a questionar muitas coisas e ficou nítido que assim não podia mais ficar. A mola já estava muito comprimida, a massa oprimida acumulava energia, revolta, motivos, necessidades, experiências. Havia muita gente acostumada a morrer por nada e agora encontravam um bom motivo.
-O vô, como você enrola pra falar da copa! E o futebol?
-Eu não vi o futebol, minha filha. O jogo que seu avô viu foi outro. Foi a reação real e crua às ações históricas acumuladas naquele meu mundo. O jogo teve momentos brutos e violentos, mas também momentos de esperança, arte, poesia e clareza. Houve gente do povo que teve medo de lutar e preferiu seguir a cartilha que havia aprendido. Houve gente do povo que lutou ao lado dos poderosos, acreditando que poderiam se dar bem e conseguir alguma coisa ou algum poder no país dos cegos. Alguns poderosos foram tocados pelo choque de realidade, então puderam enxergar sua cegueira, enfraquecendo o lado dos cegos e se unindo a seus irmão e a um objetivo de vida mais digno. Houve muita violência por parte dos poderosos, que, como sempre, preferiam matar pra não largar seu osso. O povo reagiu com violência, que fora única forma que lhes fora ensinada. Com o tempo, o povo passou a desobedecer ordens e regras que finalmente foram entendidas como absurdas. Muitos foram presos, muito morreram, do jeitinho que sempre fora antes, mas agora havia um objetivo nobre, a mudança. Os poderosos nunca esperaram enfrentar um povo com objetivo e sem medo de morrer. Não haveria cadeia para tantos e nem como bloquear aquela onda. Havia muito povo, muito carvão.
-O vovô não fez nada contra essa violência?
-Seu avô sempre quis a paz, como a maioria da população, mas não se podia ir contra o movimento da mudança. Era tudo para sair de uma violência infinitamente maior, que num golpe de caneta, matava, excluía, prendia e tirava a dignidade e os direitos de milhões. A violência de 2014 só durou até que se abrissem os olhos. Algumas canetas lutaram para que olhos fossem abertos antes de qualquer ato violento, mas a paz não era atrativa aos que nunca a cultivaram.
-Vô, então as pessoas abriram os olhos?
-Estão abrindo ainda. Ocorreu, nessa ocasião, um grande salto que nos deslocou daquela inércia, mas há muito pra aprendermos ainda. O mais importante é que as pessoas perderam o medo de abrir os olhos, perderam o medo de questionar e estão aprendendo a respeitar e tolerar as diferenças. Estamos aprendendo que vencer na vida não está relacionado a deixar irmãos abaixo de nós. Estamos aprendendo que não há seres humanos superiores a outros seres humanos, mas complementares. Que as imperfeições estão presentes em todos e que a hipocrisia e a opressão não precisam ser uma dessas imperfeições. Estamos aprendendo que somos um organismo que funciona melhor, quanto melhor funcionar cada uma de suas partes.
-Vovô, gosto muito das suas histórias… É bom ser velho, vovô?
-É bom viver todas as idades, filha. Mas nós, os velhos, nos permitimos misturar e até inventar algumas histórias, pra deixar a verdade diferente. Aí ganhamos fama de gagás, como você falou. Agora vamos, chuta logo essa bola que daqui a pouco as crianças chegam pra brincar. Você sabia que o lugar onde estamos agora também é cheio de histórias como essa que eu acabei de contar? Sobre futebol, tristezas, transformações e alegrias? Sim, filha, o Maracanã já foi palco uma final de copa do mundo! Deixa eu contar…
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Parabéns pelo texto, finalmente alguém ousando pensar e expressar. Continue assim!
Acompanho o seu trabalho elegante com a escrita. Gosta da forma poética e sensível que denuncia.