Se você é branco, heterossexual, cristão, de classe média e nascido no Sudeste, você tem grandes chances de ser um cara com bom padrão de vida. Você também, provavelmente, frequentou ou frequenta uma faculdade, teve uma carga considerável de ciências humanas e sociais no curso que escolheu e, mesmo assim, tem a pachorra de curtir no Facebook uma página que proclama o “orgulho de ser heterossexual”, “de ser branco”, ou talvez o “de ser de classe média”. Tem gente pra tudo mesmo.
Não que eu veja problema em você se orgulhar de alguma dessas coisas. Quem sou eu? Você pode adorar o tom da sua pele, assim como pode admirar seus próprios olhos por horas a fio em frente ao espelho, achando-os belíssimos, e o mesmo pode fazer com o seu dedão do pé. Nada neste mundo te impede. Mas você não se contenta com o mero orgulho pessoal. Vai além – esbraveja contra o dia da consciência negra, celebrado em novembro e motivo de feriado em mais de mil municípios brasileiros. Você também acha absurdo uma pessoa negra usar uma vestimenta com a inscrição “100% negro” e nunca ter encontrado, numa loja, uma peça parecida onde se poderia ler “100% branco”. E na qualidade de vereador do município de São Paulo, propõe à câmara um tal dia em que o orgulho hétero seria comemorado na cidade, numa espécie de contraposição à parada gay e que, felizmente, esbarrou no bom-senso do ex-prefeito Gilberto Kassab.
A nossa sociedade é racista e machista – mesmo você, que se deixa alienar, não pode negá-la. Temos para com os nossos negros uma dívida histórica, que o atual governo, por mais que eu lhe reserve críticas, vem tentando pagar com algumas políticas que ainda são insuficientes. No Brasil do século XXI, pessoas são destratadas na rua porque são negras – seria inacreditável se não fosse a realidade, a ocorrer bem ali, da porta para fora. Mulheres são mortas, estupradas, condenadas ao cárcere, privadas de sua própria personalidade por homens desconhecidos e por seus próprios maridos, quando estes as consideram como uma propriedade – e eles não são raros. E só neste 2014, que ainda não completou cinquenta dias de vida, mais de trinta homossexuais foram assassinados neste país do futuro por razões de ódio, por pessoas que sabem que não serão punidas e que o nosso Congresso Nacional seguirá omisso no debate pela criminalização da homofobia, e que alguns dos nossos parlamentares permanecerão atendendo a interesses sabe-se lá de quem, justificando suas atitudes horrendas à defesa da família – qual família?
Logo, se você é branco, heterossexual, cristão, de classe média e nascido no Sudeste, você está muito bem representado pela classe política e pelo retrato das ruas. Você não tem o que temer: está seguro. Essas condições tornam a sua vida mais fácil, não lhe dão uma razão pela qual lutar. Não que seja melhor ter essa razão de ir à luta – eu gostaria de viver numa sociedade onde isso não fosse necessário. Ainda que a sua vida não seja fácil, que você trabalhe para conquistar cada projeto, ela é mais fácil do que o do cara negro, bem ali do seu lado, que age exatamente como você. Dê-se por feliz, meu caro: a sociedade brasileira foi feita para suprir as suas necessidades.
Não quero, porém, ferir o seu orgulho. Orgulhe-se, sim, mas de ser quem você é. Seja orgulhoso de levantar da sua cama todos os dias de manhã, de ir trabalhar, de lutar pelo futuro deste país tão injusto. Quando você se olhar no espelho, sinta aquela pontada gostosa de amor-próprio e autoestima, mas não pelo tom da sua pele ou pelo fato de que você curte o sexo oposto, e sim pelo seu conjunto. E lembre-se sempre que, ali na casa ao lado, negros, homossexuais, deficientes físicos e outras “minorias” também estão se levantando, indo trabalhar, estudar, e construir com suor este mesmo país. E que eles têm, além da labuta do cotidiano, que lutar pela própria cidadania, que pessoas como você renegam. Saiba que essa gente tem um motivo bem menos mesquinho para sentir amor próprio – elas se amam porque venceram o preconceito e seguem vencendo todos os dias. Podem, graças a essas vitórias diárias, bater no peito e dizer: “Eu tenho orgulho de ser gay”, ou “eu tenho orgulho de ser negro”. Não só podem, como devem.
E se você, meu caro, nunca precisou lutar contra o preconceito, seja alegre, procure compreender o que as classes oprimidas passam neste país, e deixe de ter orgulho de ser hétero, de ser branco, de ser de classe média, porque afinal, esses conceitos só evidenciam o prazer que você tem por ser, a bem da verdade, um completo idiota.