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BRT de Campinas serve como instrumento para especulação imobiliária

.Por Fabrício Albergaria.

Segundo especialistas e moradores, sistema de transporte coletivo de alta velocidade, atrasado e incompleto, gera novos problemas em bairros periféricos, beneficiando apenas usuários de carros que vão ocupar condomínios de maior renda

O título concedido a Campinas como a cidade “mais inteligente e conectada do país” pela pesquisa Ranking Connected Smart Cities em 2019 atrai investimentos, mas esconde uma verdade incômoda que a metrópole, em seus 250 anos de fundação, não consegue esconder: a evidente segregação urbana e social. Obras de infraestrutura, que deveriam servir à população, na verdade servem ao capital privado e atuam em favor da especulação imobiliária.

(Novos empreendimentos imobiliários à beira da linha BRT na av. John Boyd Dunlop; Shopping Pq. das Bandeiras ao fundo – Foto: Fabrício Albergaria)

Em 1990, Campinas recebia pela primeira vez um sistema de transporte coletivo de alta velocidade, o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), porém seu funcionamento teve vida curta e as atividades se encerraram apenas 5 anos depois. O sistema era planejado para transportar mais de 75 mil pessoas por dia, o que desafogaria parcialmente o trânsito campineiro, principalmente ao redor do centro e em direção a algumas regiões periféricas.

Com denúncias de corrupção e indícios de superfaturamento nas obras, o VLT se tornou uma obra inacabada, com estações nunca inauguradas e outras mal localizadas, e linhas que não possuíam integração com a rede de ônibus da cidade. O resultado disso foi um atendimento de apenas 4 mil passageiros por dia e sua desativação precoce.

Somente depois de quase 30 anos Campinas voltaria a receber um sistema de transporte coletivo de alta velocidade: o BRT (Bus Rapid Transport). Utilizando parte da infraestrutura deixada pelo VLT, como linhas e estações, as obras do sistema demoraram quase 10 anos para ficarem prontas, com sua inauguração em ano eleitoral, em 2024 (4 anos de atraso).

A chegada do BRT na metrópole interiorana foi marcada por percalços em sua execução e é um exemplo de investimento em infraestrutura alegadamente voltada à melhora da mobilidade urbana e da qualidade de vida da população, mas que contém claros traços de favorecimento a empreendimentos imobiliários em sua área de implantação, majoritariamente na região noroeste e sudoeste, nos distritos do Campo Grande e Ouro Verde. Depois de muito tempo, as obras do BRT só saíram do papel quando, por exemplo, a inauguração de um shopping center e de condomínios verticais foram anunciados para a região da avenida John Boyd Dunlop.

Outro ponto muito cobrado por parte dos moradores foi a exclusão de ciclovias na faixa de operação do BRT – o projeto inicial dos corredores de ônibus previa ciclovias, mas foram retiradas sem consulta popular e, hoje, com as obras praticamente concluídas, nenhuma foi construída.

“O BRT se propõe a ser um projeto de mobilidade urbana, mas a questão é: como ele se liga aos outros modais de transporte da cidade?”, questiona Mayra Abboudi Brasco, mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “São ações hierárquicas: jogam para o Campo Grande que eles precisam de ônibus de alta velocidade, mas não querem nem saber se querem ciclovias também”, avalia. “Andar de bicicleta é algo bem comum na periferia”, observa Brasco.

A região noroeste de Campinas, onde se localiza a maior parte da extensão da avenida John Boyd Dunlop, foi objeto de estudo da pesquisadora em sua dissertação de mestrado (“Os rearranjos espaciais na região noroeste de Campinas/SP: a expansão urbana na periferia”). No estudo, Brasco aponta os meandros da urbanização da região e, principalmente, a atuação da especulação imobiliária.

“Antes mesmo de construírem o BRT já estava surgindo um monte de empreendimentos novos, no corredor do Campo Grande e ainda mais no corredor do Ouro Verde. Por exemplo, no caso do Bela Aliança [novo bairro com lotes residenciais e comerciais] já se prometia que haveria três estações de BRT em torno do empreendimento”, diz Brasco. “A iniciativa privada já está olhando muito para lá para fazer vários loteamentos sem nada em volta, e aí é a prefeitura que tem que construir escola etc.”, explica. Assim, áreas que antes não estavam aptas (burocrática e geograficamente) a receber empreendimentos imobiliários passam a ser alvo de agentes privados. Uma das formas de “driblar” os impedimentos prévios de cada área é por meio da subversão dos Planos Diretores ou através de atalhos burocráticos, como foi o caso do Shopping Parque das Bandeiras. Localizado em uma área que não poderia receber grandes empreendimentos imobiliários e dentro da zona de influência do aterro sanitário Delta, a construção do shopping ignorou parâmetros e requisitos legais em uma clara evidência do esforço do setor privado junto à prefeitura para que o projeto fosse adiante.

Para a aprovação de novos empreendimentos e alterações significativas no espaço rural e urbano de Campinas, a Lei de Uso e Ocupação do Solo do município, de 1988, precisaria ser revista em um processo com participação popular, porém isso não aconteceu. Somente em 2018 a prefeitura de Campinas decidiu rever a lei, no mesmo ano em que o Plano Diretor da cidade também passaria por revisão, e então colocou as duas leis para consulta pública por meio de formulários online, sem divulgação adequada. O resultado: baixa participação da população e aprovação do novo Plano Diretor e da nova Lei de Uso e Ocupação do Solo.

“Houve participação popular com muitas aspas; quase ninguém ficou sabendo porque tinha de entrar no site da prefeitura e responder um formulário muito vago”, aponta Brasco, que ressalta a importância e o impacto prático da legislação. “Do nada você sabe que vão cortar uma grande árvore, que vão construir mais não sei quantos empreendimentos em volta do seu bairro.”

A incorporadora responsável pelo shopping abordou a prefeitura para a realização de um estudo de viabilidade, juntamente com uma série de promessas de infraestruturas que até hoje não foram cumpridas. “Na época o shopping não podia ser construído lá porque a Lei de Uso e Ocupação do Solo determinava que grandes empreendimentos só podiam ser construídos no centro, já os fora do centro deveriam ter estudos de viabilidade, mas que nunca envolvem a população a ser atingida. Essa área era caracterizada como uma zona do Delta porque estava na área de influência do aterro sanitário que ficava próximo, então tinha que ter esses estudos”, conta a pesquisadora. “A incorporadora, autora do empreendimento, entrou em contato com a prefeitura, apresentou esse projeto e fizeram um estudo. Ele foi aprovado, só que o projeto inicial previa uma série de infraestruturas viárias próximas, afinal um shopping center não é empreendimento qualquer, vai circular muita gente, vai receber muitas mercadorias, então não à toa ele tem uma localização estratégica, em frente a uma grande avenida e próximo a uma rodovia. Só que essa grande infraestrutura viária não foi cumprida”, completa Brasco. Para driblar os impedimentos para a inauguração do shopping, foram firmados Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), numa tentativa de obrigar a incorporadora a cumprir requisitos e obras para a inauguração do empreendimento, mas pela falta de cumprimento de tais obrigações pelo setor privado e sucessivos novos TACs emitidos, há sinais de uma possível leniência da Prefeitura de Campinas para privilegiar a inauguração do shopping.

(Estação e pista do BRT inacabados em frente ao Shopping Pq. das Bandeiras – Foto: Fabrício Albergaria)

“A fronteira entre o legal e o ilegal é muito tortuosa. Para mitigar danos e atrasos cria-se um TAC, só que eles não fazem tudo o que deviam ter feito e faz-se um novo. Então, o primeiro TAC é de 2012, para dar o alvará de execução do shopping para começar a funcionar; mas as obras que prometeram fazer não são feitas, e aí fazem um novo acordo, o de 2016. O prazo para o começo das obras era de 5 anos e ainda nem começou. A fronteira entre o legal e o ilegal está nisso, nesses acordos”, elucida a pesquisadora da UFRJ.

Como alternativa para fiscalizar e coibir o avanço predatório do setor privado e no intuito de cobrar do setor público políticas públicas que atendam as necessidades da população, Brasco recomenda o óbvio: maior participação política na hora de escolher representantes. “Nosso sistema de participação política é eleger vereador, prefeito, governador etc. e às vezes isso parece que não tem muito impacto, mas a aprovação de um Plano Diretor, por exemplo, é na Câmara de Vereadores”, explica. “Além disso, é preciso ficar sempre de olho em alguma coisa que aparece no site da prefeitura, ou por comunicação oficial, para ver se vai ter alguma consulta pública ou algo do tipo.”, recomenda Brasco.

A ‘Cordilheira da Pobreza’

José Marcos Pinto da Cunha e Maren Andrea Jiménez (“Segregação e acúmulo de carências: localização da pobreza e condições educacionais na Região Metropolitana de Campinas”, 2006) criaram o termo “Cordilheira da Pobreza” para a região noroeste e sudoeste de Campinas, onde se situam bairros para trás das linhas das rodovias Anhanguera e Bandeirantes, como os subdistritos do Campo Grande e Ouro Verde – ali pouco se percebem investimentos em tecnologia e infraestrutura urbana. Consequentemente, os níveis de pobreza e de ocupações irregulares são os mais altos da cidade.

(Rodovia Bandeirantes ao fundo; Loteamento Bela Aliança no primeiro plano – Foto: Fabrício Albergaria)

Compostos majoritária e historicamente por loteamentos mais baratos que nas demais áreas da cidade, os bairros da “Cordilheira” são afastados das áreas centrais de Campinas e apresentam clara segregação social se comparados com o que Cunha e Jiménez denominam de “Cordilheira da Riqueza”, onde estão bairros da região central e leste da cidade, como Cambuí e Barão Geraldo, áreas que possuem maior concentração de empregos e investimentos em infraestrutura. Lá, estão localizados os principais estabelecimentos ligados à ciência e tecnologia, como a Unicamp, grandes empresas e escritórios.

Historicamente, a região Noroeste de Campinas era formada por fazendas produtoras de café nos séculos passados. Com o declínio da cultura cafeeira na cidade, lotes de áreas rurais sem construções foram formando a paisagem da região no início do século XX, prato cheio para a atuação da especulação imobiliária. Grilagem, loteamento irregular e invasão por aumento da população começaram a se tornar comuns. A partir da década de 1970 o processo se intensificou.

“Trata-se de uma configuração histórica que tem a ver com o processo de urbanização no Brasil, desigual e injusto”, diz o professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FECFAU) da Unicamp, Sidney Piochi Bernardini. “Essa população não tinha como comprar imóveis no mercado formal e com isso fez-se um mercado de produção de lotes populares, boa parte irregulares, com preços que essa população podia minimamente arcar. Depois do lote comprado, construíram suas casas por conta própria. Pouco se variou em relação a isso nas nossas cidades”, explica. Esse movimento configurou um ambiente propício para a especulação imobiliária: “A ocupação ali era conveniente para os grandes proprietários obterem algum lucro com a produção de lotes”.

De acordo com o atlas Campinas Metropolitana: diversidades socioespaciais na virada para o século XXI(2017), escrito por Cunha e Camila Areias Falcão, embora nos últimos anos a composição de renda da população das regiões noroeste e sudoeste de Campinas tenha mudado e os bairros estejam cada vez mais urbanizados e com mais obras de infraestrutura, como o BRT, ainda assim a segregação entre as “Cordilheiras” continua visível. “Eu ainda vejo que há uma nítida separação entre esses dois lados. Poderíamos trabalhar com muitas variáveis, mas qualquer delas iria mostrar essa segregação. Essa região sudoeste, por exemplo, possui maior número de núcleos irregulares, favelas etc. Veja o entorno de Viracopos, por exemplo”, aponta Bernardini.

Por outro lado, apesar de não haver mecanismos por meio de políticas públicas para que as periferias sejam autossuficientes na geração de empregos e oportunidades, o aspecto cultural dos bairros mais distantes apresenta um panorama diferente. Segundo o professor da Unicamp, as periferias têm culturas próprias e estão cada vez mais emergindo no cenário mais abrangente da sociedade. “Quem sabe, a partir da cultura e das redes articuladas ali, seja possível dar mais autonomia para as periferias”, diz Bernardini.

Sentindo na pele

Quem mora na região do Campo Grande sente diariamente as dificuldades enfrentadas na mobilidade urbana e moradia, e as consequências das políticas públicas aplicadas na região. Quanto ao BRT, moradores relatam problemas e piora na qualidade do transporte público para quem mora nos bairros atendidos pelo modal. “A especulação imobiliária só está servindo para destruir o Campo Grande. Nesses bairros novos que estão nascendo não tem escolas, creches e nem centro de saúde. A criação dos bairros só está servindo de impermeabilização do solo, para causar assoreamento das nascentes e inundações em áreas que não alagavam. E estão projetando praças públicas em áreas que alagam”, reclama Marcos Joaquim de Oliveira, integrante do grupo de proteção ambiental do Campo Grande e morador da região desde 1987.

Oliveira afirma que algumas promessas do início do projeto do BRT não foram cumpridas, entre elas a chegada da linha do transporte no terminal Campo Grande. Além disso, denuncia um possível retrocesso no atendimento do transporte público para os bairros atendidos pelo BRT. “O BRT privilegiou e melhorou só para o bairro Bela Aliança e para quem mora no Satélite Iris. Mas piorou e prejudicou para quem mora no Itajaí, São Bento, Parque Floresta etc. Tiraram ônibus que atendiam essas linhas para colocar no BRT; antes o 2.12, que era de 10 em 10 minutos, hoje chega demorar mais de uma hora”, relata.

(Loteamento Bela Aliança: novo bairro no caminho para o Campo Grande)

“Minha locomoção, ao invés de melhorar, piorou gritantemente”, diz Josane Pivato Poppi, que vive há 28 anos no Parque Itajaí e utiliza o transporte público de Campinas diariamente. “A chegada do BRT foi péssima para mim. Uma obra sem planejamento que, ao invés de diminuir o tempo de deslocamento, aumentou de duas horas para duas horas e meia a três horas.”

O BRT de Campinas, embora inaugurado em 2024, ainda possui partes inacabadas e trechos que precisaram ser retificados, aumentando o gasto público com as obras. Planejado como forma de desafogar o trânsito da cidade, as obras criaram outros problemas para a população que antes não existiam. Exclusão de linhas e enchentes em pontos importantes são exemplos que moradores fazem questão de apontar. “Com a inauguração de uma obra inacabada, além de não termos tido nenhuma melhora estrutural, só dificultaram a vida da população dos bairros. Estamos sofrendo com a diminuição dos ônibus nas linhas 212 e 213, só passa a cada 40 minutos, uma hora. Uma obra que virou um elefante branco interminável. Não tínhamos enchentes na Av. John Boyd Dunlop e agora temos; na região do Ouro Verde o mesmo caos, uma obra sem vazão para escoamento de água”, denuncia Poppi.

Ainda segundo ela, a chegada do BRT não fez sentido, representa falta de planejamento do poder público campineiro e, em última instância, não é uma obra sustentável. “Quando utilizo o BRT, fico mofando no terminal até passar um 212 para chegar na minha casa. Para o BRT fazer sentido, tinha que ir até o terminal Itajaí, e não parar no meio do caminho, como fizeram. No projeto era para ter ciclovias e o prefeito anterior tirou do projeto, outro absurdo que vai na contramão da sustentabilidade urbana e qualidade de vida. Em Campinas, querem manter a qualquer custo os veículos sobre rodas, sem integrar com um VLT, por exemplo, que seria muito bom e desafogaria o trânsito”, conta. Para Poppi, a frota de ônibus da cidade precisa ser renovada – os veículos constantemente quebram nas linhas ao longo do dia – e o tempo de espera no embarque precisa ser reduzido. Com a melhoria da qualidade do transporte público, a população deixaria de entupir o trânsito com carros, causa principal de congestionamentos sucessivos.

A moradora diz que é necessária a criação de rotas de fuga no trânsito do Campo Grande para escapar da Av. John Boyd Dunlop e afirma que qualquer ocorrência gera engarrafamentos quilométricos na avenida. E alerta para uma possível complicação futura para quem mora na região e explicita sua indignação: “Com os novos condomínios sendo construídos nos entornos da John Boyd, o caos do trânsito pesado tem data marcada para acontecer. A gestão pública fecha os olhos para a realidade dos fatos e do sofrimento de quem mora nas periferias.”

Questionada sobre a quem realmente serviriam as obras do BRT e do shopping Parque das Bandeiras, a moradora do Parque Itajaí adverte: “O BRT só contempla quem mora nos bairros do centro até a PUC. Depois da PUC é só sofrimento, com baldeações onde o cidadão fica mais de 40 minutos esperando. Os ônibus do BRT vivem abarrotados de gente. Sistema malfeito, mal planejado e sem frota decente de ônibus”, diz. “Difícil falar em quem se beneficiou, além dos bairros mais próximos do centro. Desde a inauguração dessa obra inacabada, o shopping Bandeiras não tem uma estação BRT, os trabalhadores do shopping continuam sofrendo.”

O projeto original do BRT contemplava ciclovias, mas antes da inauguração, na administração anterior da prefeitura de Campinas, a ciclovia foi retirada do planejamento sem consulta popular, o que causou indignação por parte da população atendida pelo modal, como é o caso do Irineu Ramos, integrante do Coletivo de Ciclistas do Campo Grande e do Conselho de Mobilidade Urbana de Campinas. “O plano cicloviário foi implementado em 2012, com participação de ciclistas da cidade, porém em 2013 muda o governo – inclusive é o mesmo grupo que está no governo hoje – e esse grupo inicia uma série de mudanças, fazem uma revisão do plano cicloviário, com diversas adulterações e com atraso. E aí divulgam um novo plano de acordo com o critério deles, sem a participação de ciclistas”, conta Ramos. “Depois de muita pressão dos cicloativistas, a partir de 2020, o atual prefeito indica que faria ciclovias de acordo com estudos de viabilidade e, então, o que era previsto anteriormente para 17 km de extensão, ligando o Campo Grande ao centro, ficou 4 km ou 5 km”, relata.

Segundo Ramos, nunca houve um diálogo do poder público com a população, apenas algumas ocasiões feitas para “simular” participação popular. Ele afirma que todas as propostas vindas da população são rejeitadas e ignoradas, e por vezes boicotadas, gerando um abismo social entre o poder público e o interesse da sociedade. “O BRT não é para nós” foi o mote que moradores da região bradavam durante as obras, conta Ramos. “É uma obra para explorar a região, não é voltada para a melhoria da nossa qualidade de vida nem para o nosso conforto”, diz o ciclista.

“Eu desconheço qualquer bairro que tenha recebido alguma melhoria por causa da obra do BRT; e alguns bairros pioraram. As marginais, por não terem radares [o equipamento fica posicionado no corredor central] agora são palco de disputa de veículos. Os moradores estão reclamando muito de excesso de velocidade nas marginais e dificuldade até para entrar em suas garagens. Eram ruas de bairros que tinham uma certa tranquilidade, conforto e segurança, e agora se tornaram verdadeiras ciladas para a população”, afirma Ramos. Segundo o cicloativista, o BRT criou uma “celeuma urbanística”: “É uma aberração, um grande engodo, porque ninguém pediu, foi feita sob interesses privados, e os moradores perderam muito”.

Para Ramos, o principal privilegiado da infraestrutura inaugurada pelo BRT não é o povo da periferia e sim o setor imobiliário, que agora poderá fazer uso de avenidas mais largas, com asfalto bom e vias de maior velocidade, facilitando o acesso das pessoas de maior poder aquisitivo aos condomínios que estão sendo inaugurados no decorrer da extensão da avenida John Boyd Dunlop. Em último caso, o efeito colateral vai ser de trânsito cada vez mais congestionado. “Não veio para melhorar nossas vidas, veio para permitir o avanço da especulação imobiliária, porque não havia estrutura para permitir o grande adensamento que o setor imobiliário desejava nos corredores de mobilidade de Campinas. E aí se fez o BRT exatamente para permitir que esse setor ganhasse milhões às custas do nosso esforço, das nossas dores, do nosso suor e, por que não dizer, das nossas mortes na avenida.”

Mobilidade urbana para quem?

Em 2023, pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) revelou que 36% dos trabalhadores passam uma hora por dia no trânsito; 21% ficam entre uma e duas horas; 7% entre duas e três e 8% mais de três. Para 51% dos pesquisados, a produtividade é atingida negativamente por causa do tempo de deslocamento; 60% afirmaram que já chegaram atrasados e/ou estressados no ambiente profissional; 34% afirmaram já ter perdido um período de trabalho; 10% já resolveram trocar de emprego por causa do tempo de deslocamento e 32% deixaram de aceitar oferta de vaga por problemas de locomoção.

Foram entrevistadas 2.019 pessoas da população economicamente ativa (PEA) brasileira acima de 16 anos em municípios com população a partir de 250 mil habitantes nas 27 Unidades da Federação.

Entrevistado pela Agência Brasil em maio de 2024, o professor da FECFAU/Unicamp Creso de Franco Peixoto afirma que é possível justificar o volume de recursos e implementar novos modais de transporte coletivo de qualidade, mais rápidos e que atendam um número maior de pessoas por meio do poder público ou de parcerias público-privadas, como já existe, por exemplo, no metrô de São Paulo. Há também, de acordo com Peixoto, a possibilidade de justificativa desses recursos através do altíssimo grau de retorno profissional e social que esses transportes gerariam – grandes cidades têm movimento de passageiros que se mede em milhões por dia, portanto impulsionando a economia em diversos setores e, por consequência, a arrecadação.

Segundo a arquiteta e urbanista Maria Ester de Souza (entrevista ao Jornal Opção em fevereiro de 2024), o sistema BRT pode resolver temporariamente o problema da circulação de veículos, mas não é a solução para a mobilidade urbana: “Pensar em mobilidade tem que deixar de ser pensar em apenas aumentar a velocidade do deslocamento de veículos. […] Se um cadeirante ou um idoso não puder fazer qualquer trecho com autonomia e em segurança, não temos mobilidade”.

A experiência com o BRT de Feira de Santana (BA) reafirma a necessidade de um planejamento pensando na mobilidade urbana como um todo. Segundo Allan Pimenta, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), para o Jornal Grande Bahia, “o que se vê é uma série de obras desconectadas, sem planejamento integrado, que não resolvem o problema da mobilidade e encarecem o transporte público”. Pimenta sugere a adoção de políticas públicas com a inclusão de ciclovias e calçadas mais adequadas a pedestres. “O desenvolvimento urbano precisa ser pensado de forma holística, com a mobilidade integrada a outras questões fundamentais, como o uso do solo, a distribuição dos serviços públicos e o incentivo ao transporte não motorizado.”

Fabrício Albergaria é jornalista e especialista em jornalismo científico

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