O filósofo, pesquisador e ativista espanhol Amador Fernández-Savater, em artigo intitulado ‘para trazer o corpo de volta à política’, tenta compreender um modo de enfrentar a extrema direita a partir não da lógica racional dos argumentos, mas dos instintos capturados pela onda reacionária que se infiltrou na psiquê. “Como vamos reativar a força de um Eros social hoje, em meio às ruínas deixadas pela guerra cotidiana de todos contra todos?”, questiona. Veja trecho do texto publicado no Outras Palavras:
.Por Amador Fernández-Savater.
O que se desencadeou [a onda conservadora da extrema direita], em escala global e local, é uma lógica de bode expiatório que necessariamente desencadeia a violência generalizada. Há muitos inimigos a eliminar, muitos movimentos sociais a reprimir, muitos corpos a sacrificar, para se continuar vivendo como se nada tivesse acontecido.
Essa lógica e essa paixão pelo sacrifício é o que Freud pensou há 100 anos, no calor da primeira grande carnificina do século XX, como a “pulsão de morte”. Ou Tânatos.
A pulsão de morte, segundo o psicanalista vienense, é a busca instintiva de um estado de “tranquilidade psíquica” anterior à própria vida. Thanatos dá um empurrão para retornar à inércia do inorgânico, suprimindo as tensões da existência.
Essa tranquilidade psíquica, no campo social e político, se expressa como um ideal de normalidade perdida, quase sempre puramente fantasiada. A pátria quando não havia estrangeiros; a raça quando os brancos imperavam; o sexo quando os homens mandavam sem serem contestados; a vizinhança antes daquela primeira mulher pobre se mudar…
Do lado de fora, o instinto de morte se projeta como energia destrutiva contra tudo aquilo que perturbe a ordem. Por dentro, o sujeito se volta contra ele mesmo numa espiral autodestrutiva de culpa e dívida. Ambos os movimentos se retroalimentam: o sentimento (interior) de culpa é satisfeito ao procurar culpados (externos). O ódio à primeira mulher pobre na vizinhança canaliza essa maldita inquietação interior de não entender…
As tensões por serem eliminadas diferem de acordo com as geografias e as histórias políticas nacionais, mas sem dúvida existe uma chave comum às mil faces com que hoje se mostra a onda reacionária: a promessa de segurança. Uma segurança contra, uma segurança na desigualdade, uma segurança que passa pela insegurança do outro.
Odiamos tudo o que evoca sintomas, tudo o que indica que “algo não está bem”, tudo o que nos lembra que as mudanças são necessárias e urgentes.
A desigualdade é afirmada brutalmente, contra qualquer tentação de “bondade”, como se denomina de forma perjorativa ter um mínimo de sensibilidade social ou compaixão.
É aderente ao que existe: a liberdade já está aí, pode-se fazer o que quiser, é a liberdade de fruição privada, de consumo, de desconsiderar o comum, a liberdade de [Isabel] Ayuso [liderança política do conservadorismo espanhol].
Como escapar dessa lógica de bode expiatório, dessa paixão pelo sacrifício, dessa pulsão de morte desenfreada? O pessimismo freudiano nos dá mais pistas do que o idealismo progressista.
Perto do fim de sua vida, e depois de acumular anos e anos de experiência clínica, Freud observou o seguinte: muitos pacientes simplesmente não querem ser curados. Observação terrível.
A cura psicanalítica consiste em um longo processo de mudança e metamorfose. Mas há pacientes que preferem se contentar com a repetição do mal-estar, a satisfazer-se com o status de vítima, ainda que isso doa, a limitar-se a apontar os culpados e exigir punição, tudo ao invés de embarcar nessa difícil aventura que é a transformação pessoal, a mudança de pele.
Em seu artigo “Análise terminável e interminável”, Freud nos oferece três explicações possíveis para esse fenômeno: 1) a resistência impostas às mudanças de proteções que o sujeito vem construindo ao longo de sua vida, o peso temível da inércia, o esgotamento da capacidade física e a plasticidade mental; 2) a própria ação da pulsão de morte, agora expressa como “narcisismo de defesa”: a ideia de que minha segurança passa pela insegurança do outro, mors tua vita mea; e 3) a rejeição visceral da feminilidade, ou seja, a recusa de se abrir ao outro para receber ajuda, de mostrar fragilidade, de entregar-se a um certo não saber.
Não é uma questão de vontade, mas de corpo. Corpos atados, emparedados e narcisistas são incapazes de autotransformação e cura. Eles preferem se acomodar na repetição e apontar inimigos-culpados do lado de fora, mesmo que o mal-estar os devore por dentro.
Levando isso para o plano político, o problema é que a esquerda não sabe o que fazer com os corpos. Ela acredita que a mudança é uma questão de pedagogia, de moral, de argumentos, de explicações, de números, de gráficos, de histórias, de significantes, de imaginários. Ela é profundamente idealista. Um verdadeiro materialismo só pode passar pelos corpos e suas pulsões. Não é que as pessoas sejam más, estúpidas ou desinformadas. Não se trata de comunicar melhor, ter mais meios ou apresentar bem os números. A onda reacionária se expande graças à tensão dos corpos.
O clima físico e afetivo hoje é revanchista, desigual, sacrificial aos mais fracos. É neste clima que se inflamam as mensagens da onda reacionária. Não tanto por sua força de convicção, persuasão ou sedução, mas porque ressoam com corpos tensos.
Só um afeto pode curar outro, só um clima pode deslocar outro, só o amor permite escapar à repetição, “só Eros pode conter a pulsão de morte”, diz Freud no final de O mal-estar na civilização.
Esta é a chave para entender como, enquanto em toda a Europa as plantas venenosas da onda reacionária já germinavam após a crise de 2008, na Espanha a saída da crise foi depositada em um impulso igualitário e nas mudanças, justamente o inverso da lógica do bode expiatório.
O 15M foi sem dúvida a expressão política de um Eros social, uma qualidade que continua sem ser totalmente pensada 12 anos depois, devido a incapacidade de pensar politicamente os afetos e a partir dos afetos.
Diante da vitimização ressentida, da responsabilidade, do comando e da proeminência de qualquer um. Diante do apontamento de inimigos, da culpabilização e do desejo de punição, da ação transformadora e não delegada, da expansão da sensibilidade social, do contágio da empatia.
Diante do narcisismo mortal das pequenas diferenças, da inclusividade e da cooperação, da abertura e do gosto pela pluralidade. Diante da violência contra os fracos, uma força dos fracos, uma raiva que não é desencadeada contra ninguém e de forma alguma, mas é ativada em defesa da vida, “raiva digna” como chamam os zapatistas.
Um Eros social e político é a pulsão organizada para frear a destruição, é a pulsão de cooperação que inventa formas de se estabelecer e perdurar, a arte da composição sensível com o outro. Um amor a partir da autonomia de pessoas, vínculos ou territórios, amor entendido como o cuidado com potencial libertador.
Hoje, Eros é destruído diariamente, devastado em uma sociedade que faz da extração do lucro e controla o vínculo com as coisas e com o mundo. Na escola, no trabalho, nos bairros, impõe-se a guerra de todos contra todos. Mas apenas a força de Eros pode recapacitar os corpos para a mudança, reinventar as proteções da vida a partir da segurança mútua, permitir uma doce abdicação da presença dominadora dos modos “femininos” de estar no mundo.
Como vamos reativar a força de um Eros social hoje, em meio às ruínas deixadas pela guerra cotidiana de todos contra todos? É, politicamente, a questão mais difícil e urgente.
Eros também busca a “tranquilidade psíquica”, explica Freud, mas não através da supressão das tensões das anomalias, das diferenças e das alteridades, não como a paz dos cemitérios, mas a partir do cuidado, do enriquecimento e do embelezamento da vida. Por isso apenas Eros pode conter Tânatos: ele satisfaz o mesmo desejo da pulsão, mas de outras maneiras. (Texto Integral AQUI)
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