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Sempre que o Brasil avança um passo, nos surpreende dando dois passos atrás

O futuro do país no fio da navalha

Por Roberto Amaral.

Pela primeira vez em nossa história, na qual o povo-massa pouco fala e ainda menos decide, o processo social (que tem suas vontades íntimas indevassadas pelos analistas de superfície), colocou nas mãos da soberania popular, seguidamente assaltada por intervenções militares, a possibilidade de decidir, não apenas a sucessão presidencial, mas o destino do país. Pois é sobre o seu futuro, nosso futuro coletivo, que a nação, representada pelos seus eleitores, decidirá no próximo dia 30/10.  

(imagem reprodução twitter – nasha g. – art cor)

Decidirá entre, de um lado, retroceder, aprofundar-se na auto-liquidação, na renúncia a qualquer aspiração de futuro decente, e, de outro, com suas próprias forças, repor-se de pé. Nada obstante a dramaticidade da quadra histórica, será, porém, uma decisão fácil, como só pode ser fácil discernir entre Tânatos, a pulsão fundamental de todas as formas de fascismo, e a vida, os dois extremos representados, um pelo projeto de continuidade bolsonarista, outro, a esperança que nos inspira a possibilidade de vitória de Lula, vontade que se transforma em necessidade. Necessidade, porém, que, para ser satisfeita, precisa, e ainda muito, de nossa dedicação política, da transformação de cada um dos brasileiros democratas em um militante que, para agir, debater, discutir, conquistar mais um voto não carece de comando. Trata-se de uma decisão que atende ao fôro de cada um.

O capitão e o antigo líder metalúrgico são sobejamente conhecidos e provados por suas vidas e pelos seus governos e projetos, o que deve facilitar a decisão política, pois ambos representam visões antípodas do conceito de vida, de dignidade e respeito humanos.

A eventual e ainda temida reeleição do incumbente daria à extrema-direita, pela primeira vez entre nós, as condições objetivas para, com o entusiasmado apoio da oficialidade militar, implantar uma inédita ditadura constitucional, pois aquelas intervenções que os fardados de 1964 impuseram com os Atos Institucionais (apoiados nos tanques e nas baionetas) seriam, desta feita, levadas a cabo segundo a ordem institucional, portanto sem ofensa à legalidade formal. Essa ordem neofascista, com forças para golpear a democracia por dentro do ordenamento constitucional, teria, para além da sustentação congressual e militar (aqui empregada da forma a mais ampla, compreendendo as casernas propriamente ditas, as diversas polícias federais e estaduais, civis e militares, todo o sistema de repressão…), o apoio de uma extrema-direita de massa, organizada e com  elevada capacidade de mobilização, já demonstrada. 

Um indicador de seu potencial é a aterradora votação obtida pelo capitão no primeiro turno, ao final de um mandato multicriminoso, enfrentando Luiz Inácio Lula da Silva, simplesmente o maior  líder popular  que nossa história produziu depois de Getúlio Vargas. 
O que nos ameaça e está à vista no horizonte imediato, como uma nuvem carregada em pleno verão, é, repita-se, uma ditadura tal qual a instalada em 1964 (ou seja, igualmente reacionária e repressora), mas, desta feita, com respaldo na soberania popular,  amparada em maioria congressual eleita que lhe permitirá as reformas constitucionais necessárias à derrogação do regime democrático. É o anúncio de fascismo tupiniquim, proclamado, aliás, pelos militares, com o “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”, lançado este ano,  o programa da ditadura que se instalaria em 2022 para estender-se até 2035, elaborado pelo Instituto Sagres e pelo Instituto General Villas Bôas, entidades beneficiadas com recursos públicos federais, objeto de contestação em estudo coletivo coordenado pelo professor Manuel Domingos Neto (Comentários a um delírio militarista).  

Em plena campanha eleitoral, o capitão já anunciou o propósito de alterar a composição do STF, elevando de 11 para 16 o número de seus ministros. Essa violência, que foi imposta, na ditadura militar, pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, seria renovada no eventual segundo governo do capitão sem a necessidade de recurso ao estupro constitucional, uma vez que operada pelo Congresso. Eis um só exemplo do que pode ser feito após abertas as porteiras: toda e qualquer reforma constitucional estará à mercê da ordem governante, até a completa derrogação do pacto de 1988 e a implantação plena do fascismo caboclo.

Jamais será excessivo lembrar que o nazifascismo não começou, na Alemanha, com os fornos crematórios, e que muito contribuiu para sua  marcha avassaladora a má consciência liberal que se recusava a tomar ciência da realidade representada pelo hitlerismo, uma história bem contada pelo jornalista e diplomata brasileiro José Jobim (um dos muitos assassinados pela ditadura militar), em seu livro Hitler e seus comediantes na tragicomédia, obra de 1934, recentemente reeditada pela Topbooks.

A decisão de 2022 (que não reproduz a de 2014) retoma características daquelas de 1988 – a redemocratização –, e de 2018, a consagração do golpe de 2016, marco inicial da tragédia em curso. As eleições de 2022 significam, de igual, uma modificação qualitativa essencial quanto aos pleitos passados, que não devemos perder de vista. Não se trata mais de enfrentar a socialdemocracia paulista, mas de fazer face às ameaças de um obscurantismo, um arremedo de Duce, anacrônico mas poderoso pelo apoio popular que ostenta, pelos seus compromissos com o grande capital, pelos círculos de milicianos e seitas neopentecostais, pelo respaldo em uma extrema-direita global que, a partir do trumpismo, se estende pela Europa  ocidental (que encontrou governada pela direita), após instalar-se na Polônia, na Hungria e na Turquia.

Celso Furtado comentou que somos o país das oportunidades perdidas. Talvez sejamos, ainda mais, o país que não se conforma com o progresso. Mas sem dúvida o país que padece a tragédia de possuir uma classe dominante alienada e alienígena, externa ao país, servida por forças armadas que elegeram como adversária não a pobreza ou a subserviência, mas a emergência das grandes massas.  Sempre que avançamos um passo, nos surpreendemos dando dois passos atrás.

Após as conquistas democráticas da república de 1946, fomos golpeados pela ditadura militar (1964-1985). Depois da restauração democrática com a Constituição “cidadã” de 1988, fomos imolados pelo golpe de 2016, cujas consequências perduram. Depois dos avanços econômicos, sociais e políticos ensejados pelos governos Lula-Dilma, fomos condenados pelo atraso representado pelos quatro anos do governo findante. Após inumeráveis conquistas trabalhistas e populares,  somos ameaçados pela emergência do pensamento e da ação de uma extrema-direita que nossos sociólogos imaginavam incompatível com a “alma nacional”. E ela aí está, ameaçadora, numerosa, organizada e armada. A resposta, porém, está em nossas mãos:  a organização popular, cujo ponto de partida é, forçosamente, a eleição de Lula, que segundo os dados disponíveis se dará no fio da navalha. Pois a encruzilhada histórica nos coloca a disjuntiva democracia e ditadura, avanço e atraso, civilização e barbárie, categorias presentes no que temos de história nacional. 

Talvez em nenhum outro momento seja tão decisiva a organização popular, desta feita indispensável para impedir a vitória do atraso, e fundamental para a sustentação do desejado governo Lula – que enfrentará uma resistência civil-militar jamais conhecida na república.
Mas de pouco nos serve, neste momento, especular sobre o caráter que assumirá o governo frenteamplista que a disjuntiva histórica faz indispensável, e o papel das forças progressistas. A prioridade, por óbvio, é torná-lo realidade. (Com a colaboração de Pedro Amaral)

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