O caso Renato Freitas, a política que incomoda e o – não – lugar do negro na sociedade brasileira!
.Por Christian Ribeiro.
“sou tudo aquilo que pensaram que ninguém seria” (Triunfo, EMICIDA)
Desde as últimas eleições presidenciais, ocorreu um recrudescimento de nosso espectro político, tendo um acentuado aumento das forças e representações (ultra)conservadoras com seus discursos e práxis – que acabaram sendo legitimadas através do voto – em que se faz pautar uma percepção de repúdio e oposição tenaz aos abusos das ditas “minorias sociais”. Não sendo por acaso que no mesmo período, tenha havido um processo perceptível e empírico de uma acentuação das ocorrências de crimes e violências contra as populações afro-brasileiras, indígenas, LGBTQI+ e contra as mulheres.
Grupos identificados pelos (ultra)conservadores como os responsáveis por uma pretensa “degradação moral” e de costumes que ameaçam o desenvolvimento de nossa ordem e normalidade social. Existe uma defesa ideológica, quase patológica, de se resguardar os valores dessa sociedade, baseada em um conjunto de regras e ordens, no sentido de que “sempre foi assim/nós somos assim”. Não interpretando que tais referenciais tenham sido construídos, sustentados e reproduzidos a partir da exploração, sofrimentos e mortes dos grupos socialmente minorizados, ao longo de nossa história.
Exemplo dessa defesa de valores de viés excludentes e discriminatórios, se dá a partir de ataques – físicos, psicológicos e virtuais – ante as representações políticas, culturais e religiosas oriundas desses grupos, ou perante as demandas e ideias por eles reivindicados-simbolizados em seus cotidianos. O que nos revela existir no nosso país, um processo de descrédito e perseguição não contra os geradores de nossos males sociais, de nossas falhas estruturais enquanto sociedade. Mas sim contra aos sujeitos e coletivos que se opõem, denunciam e confrontam essas inequidades. Em outras palavras, a busca pela defesa de “nossas” tradições civilizatórias, na verdade esconde os traços fundantes dessa sociedade, como o racismo, o machismo e o arcaísmo, dissimulados por uma hipócrita moralidade salvadora de todos os males e perigos. Sempre em oposição aos “outros”, os que sempre foram (são) desprovidos de direitos, renegados em sua cidadania e de sua própria condição de humanidade. É a velha prática de se buscar colocar, de se deixar estas populações relegadas em seu devido – não – lugar de invisibilidade e silêncio. Como se só pudessem viver como que resignados e passivos, em seguir os passos de sua alienação e submissão cotidiana.
Tal realidade de ódio ante aos que desafiam a nossa ordem social vigente, ficou muito mais nítida com as séries de ameaças e perseguições executadas contra as legislaturas negras eleitas nos últimos dois pleitos eleitorais (2018 e 2020). Com estas sendo desmerecidas em suas virtudes e significados. Desrespeitadas em suas representações simbólicas e referenciais que carregam em si, como se não fossem eleitas para isso pelo poder do voto, tal qual as representações políticas representantes dos grupos sociais hegemônicos. Mas sendo, ao contrário destas, sistematicamente atacadas desde o lançamento de suas candidaturas e por todo o processo de suas campanhas eleitorais. Uma situação de intolerância e ódio que só se intensificou com o início dos mandatos legislativos, tendo estes mandatos suas representações políticas dificultadas ou cerceadas no sentido de seu pleno funcionamento. Práxis legislativa que na maioria das vezes são exercidas por mulheres negras – por vezes através de mandatos coletivos – CIS ou TRANS, que acabam por exercer uma série de intersecções representativas e dialogais com as pautas LGBTQI+, feminismo negro, juventudes negras e periféricas e movimentos sociais populares.
Num leque ampliado de exercício cidadão, que acaba por tensionar os alicerces consolidados de nossa ortodoxia política. Uma novidade ao nosso cenário eleitoral dos mesmos atores sociais e velhas representações políticas, que não se fez por agradar aos que se consideram como os eternos donos do poder. Uma sensação de desagravo e mal-estar, que nos faz acreditar tenha em muito contribuído para a ocorrência de sistemáticas formas de ações racistas visando o impedimento destas contemporâneas expressões antirracistas e de negritudes. Que mesmo institucionalmente, acabam por demarcar processos de confrontações contra o Sistema, para dessa forma reafirmar a posição destes legisladores enquanto atores sociais ativos e conscientes de sua condição de potenciais agentes construtores e transformadores de suas próprias realidades históricas.
Dentre essas candidaturas negras perseguidas pelo aquilo que representam e potencializam, uma das mais atacadas é a do vereador Renato Freitas, eleito pelo Partido dos Trabalhadores em Curitiba, uma das capitais de maior conservadorismo no país. Um dos centros políticos do movimento antipetista e, principalmente, de aberta confrontação aos ideários mais básicos de direitos humanos na política, em especial aos vinculados perante o combate ao racismo, pela valorização e reconhecimento das negritudes brasileiras. Um não reconhecimento ao lugar político ocupado por um vereador eleito, com destaque, através de uma campanha baseada em uma linguagem jovial, urbana e periférica. Com elementos estéticos e culturais diretamente relacionados ao movimento hip hop e ao basquete de rua. Sendo a própria figura pública do jovem legislador, através de seu cabelo black power, vestimentas e falas ligadas as jovens populações afro locais, um ato político por si só. Reconhecido e validado pelos seus. Uma forma de se produzir e vivenciar a política de maneira nada usual ou ortodoxa. Ainda mais, em especial, numa cidade que historicamente nega enviesadamente as heranças e influências negras tanto em sua formação e desenvolvimento, quanto em sua contemporaneidade.
Uma realidade que nos faz compreender que a candidatura e a sua posterior eleição, foram consideradas uma afronta imperdoável para os que sempre se julgavam senhores de todos os caminhos e destinos da capital paranaense. Caminhos estes interditados, quando não destruídos, aos descendentes de africanos, as populações negras que ali vieram por habitar.
A própria vereança de um único sujeito negro é um não aceite a essa realidade, é um buscar por alteridade social e política que não pode ser perdoada. Tanto pela insolência que ela representa, quanto pelo perigo que ela enseja de se tornar uma referência para outras juventudes negras, para outros excluídos do poder. Que podem vir a se aventurar em contestar e contrariar o que sempre se fez referendar enquanto imutável e inconteste. Verdade absoluta que nunca deveria ser se quer indagada.
O mandato político de Freitas, o seu fazer político, representa e se faz imbuído de uma esperança, menos em sentido de ilusão, mais em perspectiva de uma certeza revolucionária que numa perspectiva racista não pode germinar. É roseira que deve ser podada e arrancada pelas raízes, para que de seu solo não semeie o menor resquício de Primavera. O que nos situa compreender as ações de coerção e perseguição policial – tanto por base das policiais civil e militar, quanto da guarda municipal – que o vereador sofreu desde o momento inicial de sua campanha, enquanto inerente a um processo de constrangimento político, de cunho racista, nada mascarado ou sutil, que foi aumentando cada vez mais e mais. Somadas as ameaças realizadas a sua pessoa, além de seu núcleo familiar e de amizades, como forma de dissuadi-lo de sua candidatura ou de uma amenização de seu discurso crítico, contundente, ante ao apagamento da população negra na cidade. Além de situar seu mandato como canal de denúncia e enfrentamento ante aos abusos policiais perpetrados contra a jovem população negra curitibana, situando esta realidade enquanto consequência do racismo estrutural da sociedade brasileira que ali se faz manifestar.
E tal postura, tal exemplo de um “simples” jovem negro, que não sabe se portar como se deve, que não sabe, ou não aceita, qual é o “seu lugar”, não pode ser permitida. Por isso o sistemático “não aceite”, o “não respeito” consciente de seus pares legislativos. Com qualquer discurso, fala ou ato de Renato Freitas sendo atacado, desafiado e desqualificado em sentido, valia e significado. Um processo de perseguição racista, embasada por uma pretensa quebra de decoro parlamentar, em que se – tenta – pauta um discurso de que Freitas não possuí postura condizente, comportamento público, esperado de um vereador.
O que nos faz indagar, por essa perspectiva, qual o “padrão moral” que deve ser atingido, aceito e reproduzido por um político? Não seria aquele em que se busca, ao menos, questionar os padrões excludentes e racistas de uma sociedade/cidade? Ou tais metas, não devem ser buscadas, e muito menos permitidas ou toleradas? Devendo tudo ficar como sempre foi? Acreditamos que a instalação do processo de impeachment em relação ao mandato de Renato Freitas, seja a nossa resposta.
Essa situação de Curitiba é retrato nítido de uma realidade nacional, a de que não existe tolerância e aceite na sociedade brasileira para os sujeitos sociais e culturais negros quando estes passam a desenvolver, e a manifestar, consciência histórica e política perante sua realidade-mundo. O que explica esses processos de interdições e ameaça aos vários e plurais mandatos parlamentares afro-brasileiros como uma forma de não aceitar e buscar retirar o acesso e participação destas populações dos processos decisórios e gestores da nação. No sentido de que toda forma de política é um conjunto de poder que se faz manifestar de maneira pública e democrática, representando – ao menos conceitualmente – de maneira direta as demandas e os direitos do povo, pelo povo e para o povo!
No país em que “racismo não existe”, em que somos “todos iguais” e que ama repassar tags como “vidas negras importam” – menos quando são as brasileiras, pois aí vira “mimimi” ou “vitimização” – em que neonazistas circulam livremente, exibindo seus símbolos de ódio e morte, sem pudor ou temor algum, em nome de uma “liberdade de expressão” que literalmente nos mata. O que desperta a indignação e repulsa dos legisladores municipais de Curitiba é a práxis política e a figura humana do Renato Freitas? E seguimos fingindo que tudo isso é apenas resultado de uma conjuntura política local? Quando sabemos que na verdade o Sistema não perdoa a quem ousa não ficar no seu devido lugar… Não levar isso em consideração e não se opor a essa realidade. No sentido de querer ignorar aquilo que grita ante a sua face, lhe torna cumplice, quando não agente colaborador e reprodutor dessa violência moral e psicológica que agora ataca publicamente, não só Renato Freitas, mas todas as representações de humanidades fora dos padrões. Querer negar isso é, no mínimo, hipocrisia! Se não for outra coisa… Que nós sabemos exatamente o que é!
Mesmo que o processo de impeachment esteja suspenso por medida liminar, após a publicação de carta enviada a Freitas, com evidências da participação de um legislador municipal nessa atividade, com explicito teor de ódio e racismo, com a promessa de realização de uma limpeza étnica e racial, ao prometer “branquear” não só Curitiba, mas todo Sul do país (além de também conter aviso de que farão Freitas “voltar para a senzala”) e, principalmente pela rede de apoio que se formou a partir das entidades sociais e movimentos políticos das comunidades negras de todo país, que deu sentido a uma frente de forças progressistas que estão se opondo a essa arbitrariedade sem precedentes! Não podemos nos deixar enganar por essa vitória momentânea, pois foi somente uma batalha de uma guerra que se avizinha estar longe de seu término.
Mas quem pensa que tal situação, independente do resultado que venha gerar, irá impedir que Renato continue em sua ação política antirracista e pró negritude, comete grave engano. Pois ele é pertencente a tradição negra revolucionária brasileira dos que buscam romper os grilhões que almejam nos aprisionar. Daquelas pessoas que fazem o Sistema tremer ante a sua simples presença. Nesse sentido, esse artigo se dá enquanto denúncia ante tudo isso que aqui se faz relatar, mas é, em especial e preferencialmente, um manifestar de apoio e de solidariedade. Irmandade ancestral e de luta, que se dá e se fortalece nos cotidianos da vida. Para que ele tenha a certeza de que sozinho não está, nem por um segundo, nem por um instante.
Na certeza de que é só o começo de uma trajetória de luta e militância que ainda há de gerar os maiores e melhores frutos. O que nos faz ter a certeza, a esperança viva de que racistas, não passarão… De que racistas, não vencerão… E viva Renato Freitas!
Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil