Sobre as credenciais democráticas da velha imprensa
.Por Roberto Amaral.
A grande imprensa vive grave crise. O fenômeno não é novo, nem brasileiro; vem de décadas, refletido na permanente redução de páginas e queda das tiragens, precedendo o encerramento das atividades de veículos impressos. Já não se cotam os que deixaram de circular. O fenômeno atinge principalmente a imprensa gráfica, mas a ela não se restringe, pois alcança o rádio e a televisão – primeiro os canais abertos, e já agora os canais por assinatura. Essa tendência foi agravada pelo estonteante desenvolvimento da internet e das chamadas redes, mas é anterior à sua emergência.
No mundo todo há mais de 50 anos se observa a crise do setor, e o Brasil oferece campo para estudo de caso. A rede Tupi de televisão (tão ou mais poderosa quanto a Globo em seus grandes dias), teve a concessão cassada em 1980, após mais de dez anos de agonia exposta; avançava o processo de derruição dos “diários e rádios associados” de Chateaubriand, cadeia de revistas, editora de livros, emissoras de rádio e televisão e jornais cobrindo todo o território nacional, montada a partir de 1930 por métodos de um capitalismo jagunço que não resistiu à modernidade. A mesma inadequação estrutural levou de roldão o Jornal do Brasil, incapaz de enfrentar a concorrência predatória do sistema Globo. Outras redes de televisão, mais jovens, surgiram e desapareceram, como a Excelsior e a TV Rio. Outras, como a antiga Rede Record, de Paulo Machado de Carvalho, sobrevivem como palco eletrônico de uma seita religiosa-mercantil. Seguiu-se a concentração de canais e com ela o sistema de transmissão em cadeia, a última pá de cal na produção regional, já abalada desde a introdução do videoteipe.
Mas evidentemente a debacle fica mais evidente quando tratamos das revistas e jornais impressos. No Rio de Janeiro, nos últimos dez anos, desapareceram mais de uma dúzia de veículos diários, e no país cerraram suas portas todos os vespertinos. Além dos vespertinos, chegamos a ter, nos anos 1960, inumeráveis diários que circulavam à noite, como o Diário da Noite e A Noite, no Rio de Janeiro, e a Folha da Noite em São Paulo. Em todo o país, hoje, não há mais de dois veículos disputando concorrência nas capitais, e as emissoras de televisão locais não passam de repetidoras das programações geradas em São Paulo e no Rio de Janeiro, sedes das grandes redes. Ao mesmo tempo, deixaram a cena potentados da indústria gráfica, como os grupos Abril e Manchete (que chegou a comandar uma rede de rádio e televisão) entre outros. Da diversidade, caímos no oligopólio empresarial, e daí no monopólio ideológico.
No país, como ainda formadores de opinião, sobrevivem, ditando a uniformização editorial, O Globo, Estadão e Folha de São Paulo. Os chamados jornais de província são repetidores da linha política dos três líderes, que, por seu turno, reproduzem, ipsis litteris, as matérias das agências internacionais. Por lentes estrangeiras é que nossos leitores e telespectadores são levados a formar opinião sobre o mundo, sobre outros países e outros povos, a amar a uns e a odiar outros, quase sempre sem saber por que, e sempre contra nossos próprios interesses, sotopostos pelos valores e pela hegemonia do centro imperial.
Abundam explicações para o fenômeno. Registre-se as características presentes do desenvolvimento da sociedade de massas e do capitalismo monopolista, e o preço pago à liberdade de opinião pelos condicionamentos da Guerra Fria. Associe-se esses fatores à revolução contemporânea da comunicação, impondo fusões, economia de meios e, por consequência, a substituição do debate pelo monopólio ideológico.
O caráter atual brasileiro das comunicações, oligopólio empresarial e monopólio ideológico, é o resultado desse processo, agravado pela inexistência de uma burguesia comprometida com o interesse nacional, pois a que temos oscila entre a defesa do status quo e o retrocesso político-econômico cuja melhor ilustração são os anos presentes e as apreensões que a expectativa do futuro imediato nos traz.
Por essas e muitas outras alterações no processo de produção editorial, perdida pelos grandes meios a corrida em face da instantaneidade da informação fornecida pelos novos meios, que transforma um celular em instrumento de comunicação mais amplo que a maioria dos veículos clássicos, os grandes meios contemplam seu próprio fracasso como formadores de opinião, o último sítio de luta pela sobrevivência.
Sobre o processo internacional, o Brasil oferece uma particularidade, que é a crise mortal da queda de credibilidade. Simplesmente porque não há relação fática entre o discurso contemporâneo de defesa da democracia e a história própria de cada um de nossos veículos, gradualmente revelada.
Refletindo a alienação da burguesia nacional, a imprensa aqui produzida jamais esteve comprometida com os interesses do país, principalmente em suas contradições com o imperialismo. Não se trata, nestas linhas, de rever a história recente da imprensa brasileira, mas uns poucos exemplos são suficientes para pôr em relevo esse papel nocivo. Os grandes jornais da época se perfilaram contra a campanha pelo petróleo, e sempre resistiram à Petrobras. O principal veículo de informação de massa era o Repórter Esso (título que diz tudo) primeiro no rádio (a partir e 1941), na televisão em sua última fase (1952-1070). A grande imprensa (a especificidade da Última Hora não altera a análise do fato), combateu o governo constitucional de Getúlio Vargas, e palmilhou o caminho do golpe de 24 de agosto de 1954; reuniu-se a militares insubordinados e tentou impedir a posse de Juscelino; frustrada pela reação legalista, juncou seu governo com unânime e virulenta oposição; unanimidade que repetiria na oposição a João Goulart e às reformas de índole burguesa, como a reforma agrária defendida por José Bonifácio na Assembleia constituinte de 1823.
Assumiu a campanha pelo golpe de 1º de abril de 1964, para o qual O Estado de São Paulo, por exemplo, extrapolando o que se pode entender como papel de um órgão de imprensa que presa a liberdade, foi a central da arrecadação de fundos da intentona golpista, e seu diretor, Júlio de Mesquita Filho, um agente ativo. O depoimento é do general Cordeiro de Farias, autointitulado chefe militar da subversão em São Paulo: “[…] as fontes principais de arrecadação eram duas: o governador Ademar de Barros e o jornal O Estado de São Paulo, através do Júlio Mesquita. […] No fim da campanha, quando as necessidades aumentaram, o volume de dinheiro cresceu. Nesse ponto, praticamente todos os recursos foram depositados em contas bancárias de O Estado de São Paulo, cuja coleta era bem maior que a de Ademar de Barros”. (Cf. Aspásia Camargo & Walder de Góes, Diálogo com Cordeiro de Farias, pp 553-4).
Nessa faina e a seguir na defesa da ditadura, o vetusto jornal dos cafeicultores paulistas marchava de braços dados com o sistema Globo, bem recompensado baluarte da ditadura. Ficou para a história o agradecimento do ditador Médici: “Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal [Nacional]. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho”.
A Rede Globo esmerou-se em seus atentados à democracia. Em1982, por exemplo, comandou uma frustrada tentativa de fraude eleitoral (conhecida como “caso Proconsult”) que visava a impedir a eleição de Leonel Brizola ao governo do Estado do Rio de Janeiro, transferindo parte de seus votos para o candidato da ditadura, Welington Moreira Franco. Construiu a candidatura Collor de Melo e manipulou o último debate da campanha de 1989 para prejudicar, como conseguiu, o candidato Lula e eleger o seu delfim.
Agora há pouco, a imprensa, professando anti-jornalismo, se fez arauto da chamada operação Lava Jato, associando-se aos crimes cometidos pelo hoje candidato Sergio Moro (ex-juiz, ex-ministro do presidente que beneficiou na campanha, ex-advogado de empresa norte-americana interessada em processos ligados às suas decisões) e seus asseclas do ministério público. Trata-se de um dos episódios mais vergonhosos da imprensa brasileira, pois reuniu, num empreendimento de notória malversação da verdade, tanto jornalistas quanto os donos das empresas de comunicação, operando em associação com o conluio de juiz e procuradores, em movimentos casados. Foi ingente o esforço por destruir a empresa nacional. Seu desempenho foi fundamental no impeachment contra Dilma, a prisão e a inelegibilidade de Lula, movimentos essenciais para a eleição do capitão que aí está, catapultado em meses dos porões do Centrão para a liderança nas pesquisas.
Essas observações são despertadas pela leitura, na Carta Capital, de informação segundo a qual a UNESP inicia um trabalho de investigação de uma série de empresas que contribuíram com a repressão militar. O financiamento da pesquisa vem da indenização paga pela Volkswagen, condenada no âmbito de processo promovido pelo Ministério Público Federal. Entre as empresas acusadas de conluio com a repressão está a Folha de São Paulo, hoje, como o Globo, o Estadão e seus fractais, seletivamente preocupada, com a “repressão” chinesa a muçulmanos insurgentes e o “populismo” da dupla Alberto Fernández-Cristina Kirchner. A velha imprensa, seus editoriais e seus colunistas, gastaram pólvora contra o ex-presidente Lula por não haver-lhe arrancado a solicitada crítica à reeleição de Daniel Ortega, que ela e o Departamento de Estado dos EUA consideram um “ditador”.
Durante a ditadura militar, a Folha de São Paulo, que cumpriu papel decoroso na campanha das Diretas Já, escreveu uma história muito triste que está à espera de autocrítica, já esboçada pela Globo. É acusada de haver cedido viaturas aos serviços de repressão da ditadura e fornecido fichas de seu departamento de pessoal para a polícia localizar e prender funcionários e ex-funcionários acusados de “subversão”, pelo DOI-Codi ou pela Operação Bandeirantes. De um caso eu sei, o do jornalista Renato Viana Soares, meu amigo. Para prendê-lo (nos malditos anos 1970), o DEOPS obteve sua ficha de funcionário fornecida pelo Departamento de Pessoal do jornal.
Esse fato, a ponta de um novelo que a UNESP vai desenrolar, não encerra a história toda do jornal, mas é um indicador da fragilidade dos compromissos democráticos dos empresários da indústria da comunicação. Neste momento de revisão política, a Associação Brasileira de Imprensa prestaria um grande serviço à história e ao jornalismo, e à nossa profissão, se promovesse um amplo debate em torno do papel dos jornalistas e da imprensa lato senso tanto na construção de episódios, como este de que é acusada a Folha, quanto na montagem de graves desvios éticos como a ação conjugada de repórteres, policiais, promotores e magistrado no maior escândalo judicial brasileiro, afinal posto à luz do dia pela ação destemida do The Intercept. A democracia brasileira, sempre em construção, e sempre ameaçada, agradecerá.