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A ilha dos juízes fartos na sociedade do povo sequioso

Vale a pena a leitura do artigo de Gabriel Miranda, “As robinsonadas do Direito Penal: glosas críticas marginais aos juízes fartos”, sobre a condenação pelos juízes brasileiros de uma mulher que furtou comida para os filhos. Veja alguns trecho publicado pelo Lavrapalavra.

Em referência a Robinson Crusoé [1], Karl Marx empregou o termo “robinsonada” de maneira a satirizar os economistas políticos liberais, que entendiam os sujeitos como inteiramente livres e apartados das relações sociais nas quais se inserem. A sacada de Marx é que tal ideia absurda apenas pode parecer plausível se considerarmos a hipótese de um sujeito que vive em uma ilha deserta. Do contrário, no concreto do mundo real, o que existe são indivíduos que se situam em realidades sociais objetivas. Nesse sentido, em uma sociabilidade capitalista, a liberdade plena com que sonham os ideólogos do liberalismo não pode figurar como nada além de um desejo. Afinal, nossa liberdade é sempre coagida de alguma maneira pelo “deus dinheiro”. …

(foto gov sp – div – edson lopes jr – arq)

Recentemente, a notícia de que uma mãe teve a sua prisão decretada após furtar de um comércio uma quantidade de alimentos avaliada em menos de 22 reais revoltou a todos aqueles que ainda carregam consigo a capacidade de se indignar diante das injustiças. De modo a piorar a situação, no dia 7 de outubro, a prisão foi mantida pela 6ª Câmara de Direito Criminal de São Paulo. De acordo com matéria veiculada na Ponte Jornalismo em 11 de outubro, os argumentos utilizados pelo promotor e pela juíza para validar a prisão preventiva versavam sobre a “necessidade de manter a ordem pública”, tendo em vista que a mulher “representa um risco à sociedade”, principalmente pelo fato de já ter praticado furtos outras vezes.

Duas expressões do discurso jurídico supracitado são importantes destacar: “manter a ordem pública” e “risco à sociedade”. Em relação à primeira, não podemos dizer que é falaciosa a justificativa de que tal prisão pretende preservar a ordem. De fato, o que se deseja manter intocável – e é para isso que o Direito, enquanto um conjunto de saberes e fazeres, se presta – é a ordem. A ordem da desigualdade, da pobreza, da fome, da violência e do racismo que vigoram no Brasil desde a sua fundação. Trata-se da mesma “ordem” produtora de sujeitos que, por serem violados de todas as formas, encontram no furto e em outras ilegalidades uma estratégia de sobrevivência.

Além disso, em relação ao argumento de que a acusada oferece “risco à sociedade”, cabe indagar qual o risco que uma mulher que cometeu um crime sem violência e sem vítimas pode oferecer para a sociedade. É evidente que eles não se referem do risco à vida. Afinal, quem furtava o fazia sem armas e sem grave ameaça. Mas a mulher acusada acarreta sim um risco à sociedade: à sociedade capitalista. Pois, com o seu ato, ela confronta a propriedade privada, um dos pilares sob o qual se erige o capitalismo. E anuncia – mesmo que não tenha consciência disso – que a vida e o alimento dos seus filhos valem mais do que as leis que foram criadas para defender os interesses da classe dominante. Isso o Direito e os seus deuses de toga não podem admitir.

Contudo, o show de robinsonadas ficou a cargo do desembargador Farto Salles, que, em sua decisão de manter a prisão – acompanhada pelos outros desembargadores Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva –, argumentou, de acordo a matéria da Ponte Jornalismo, que a mulher apresentava “índole indiscutivelmente voltada à delinquência ou persistência na senda do crime, revelando-se a segregação imprescindível para se obstaculizar risco real de novas recidivas, considerado o caráter nocivo próprio daqueles que fazem dos delitos seu modo de vida”. Referindo-se à ruptura do vínculo familiar entre a mulher e os filhos, Farto Salles acrescentou que “ela mesma seria a culpada de permanecer longe dos filhos pelo crime que cometeu”….

Em nenhum momento Farto Salles tece alguma consideração sobre a necessidade de alterar a condição de pauperismo que assola a população brasileira. Trata tal fato como natural e preocupa-se apenas em punir aqueles que, porventura, infrinjam a lei, não em garantir oportunidades para evitar que furtar ou praticar outra ilegalidade se apresente como uma estratégia de sobrevivência para largos setores da população brasileira. No frigir dos ovos, o que tal discurso pretende é trabalhar a fim de que a prisão da acusada sirva de exemplo para que outras pessoas não ousem atravessar a barreira sagrada de defesa da propriedade privada….

Enquanto Bolsonaro e sua turma – com diversos crimes de responsabilidade e mais de 480 mil mortes [2] evitáveis provocadas por uma política deliberada de genocídio – seguem impunes, o Direito Penal continua, como sempre, direcionando suas acusações e suas sentenças aos que roubam para ter o que comer. Nesse contexto, ao mesmo tempo que a burguesia e seus burocratas dormem o sono dos anjos, a classe trabalhadora amarga as garras de um sistema de justiça classista e da violência policial….

Embora a criminalização da pobreza seja algo que faz parte da formação social brasileira assim como a feijoada, indignar-se diante da barbárie ainda é uma tarefa necessária se quisermos superá-la. Que, então, nos indignemos e canalizemos nossa revolta na organização política de um projeto de transformação da sociedade em benefício daqueles que são explorados e oprimidos, ou seja, de nós mesmos. Como no título de um poema de Bertolt Brecht: é preciso agir! (Veja texto completo no Lavrapalavra)

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