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O livro Amar, depois de perder: uma Poética da Ninfa já pode ser comprado no site da Benfeitoria (LINK) durante a campanha de pré-venda com frete grátis. Trata-se de uma edição revista e ampliada da tese de doutoramento de Maura Voltarelli que trará um inédito posfácio do professor e pesquisador da Unicamp, Eduardo Sterzi, e apresentação do professor e pesquisador da USP, Roberto Zular. A pré-venda faz parte do lançamento pela Ofícios Terrestres Edições. Com cerca de 600 páginas, o estudo terá também novas imagens e documentos que não fizeram parte do doutoramento.
O livro, que aborda a temática da Ninfa em quatro poetas brasileiros: Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Donizete Galvão e Carlito Azevedo, faz uma incursão a partir de diversos teóricos, incluindo Walter Benjamin, Aby Warburg e Georges Didi-Huberman.
A propósito, como diz o teórico francês, a Ninfa surge em “belas aparições vestidas, vindas de não se sabe onde, caminhando no vento, sempre comoventes, nem sempre muito sábias, quase sempre eróticas, inquietantes às vezes. Ninfas: divindades menores sem poder institucional, mas irradiantes de uma verdadeira potência a fascinar, a desarranjar/ atormentar a alma e, com ela, todo possível saber sobre a alma. Perigosas, como o é a memória – quando reconhecida até nos seus continentes escuros – o desejo, o próprio tempo”. (Georges Didi-Huberman, Ninfa moderna, 2002, p. 07)*
O título do livro remete a outro grande poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade. “Amar, depois de perder, viver de dentro da morte, é converter-se em fantasma, em imagem. Não por acaso, o fantasma é o interlocutor desses versos drummondianos surreais e improváveis. Amar, depois de perder, é, assim, um gesto de afirmação da vida, da beleza nascida da dor, da espera, de tudo aquilo que insiste em seus mais profundos desejos. Que insiste, apesar de tudo. Frágil, mas profundo. Esse estudo é, antes de qualquer outra coisa, um abrir-se ao fascínio das imagens que só podem ser capturadas quando perdidas, como sucede com o real, com a própria vida. Amar uma Ninfa; Amar, depois de perder, é atravessar o abismo”, escreve a autora.
O projeto Ninfa
Um dos objetivos principais da tese, que teve orientação do crítico literário, poeta e professor Eduardo Sterzi, e foi defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, em maio de 2019, foi desarranjar as narrativas usuais da historiografia poética brasileira moderna e contemporânea, vendo, no lugar de rupturas a opor diferentes momentos históricos, vínculos insuspeitados, sobrevivências inquietantes, enlaces de tempos, em um jogo de transmissão e transformação de gestos emotivos. Para tanto, a Pathosformel Ninfa – essa “fórmula patética” tal como pensada pelo historiador da arte alemão Aby Warburg – foi escolhida como a desorganizadora dos gêneros e estilos literários, e seguiu-se de perto o seu “deslocamento anárquico” pela poesia de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, poetas fundamentais da modernidade poética, e, em direção ao momento contemporâneo, pela poesia de Donizete Galvão e Carlito Azevedo.
A partir de uma zona de deslizamento entre a imagem e a palavra, aproximando literatura e artes visuais, o livro procura mostrar como cada uma dessas “poéticas da imagem” se debate com o fluxo de desejo que é a Ninfa, um paradoxo em movimento, ao mesmo tempo evanescente e corpórea, impassível e erótica, doce e demoníaca, jovem e antiga, perdida e reencontrada.
Das mênades pagãs com o exuberante drapeado do seu vestido e o detalhe do seu passo dançante, passando pela serva florentina de Ghirlandaio com a sua leve e inquietante brise imaginaire, pela Salomé mortífera, pela Vênus de Botticelli com seus cabelos a flutuar livremente ao vento, por Beatriz, a amada impossível de Dante, pelas formas fluidas do art nouveau, chegando até a modernidade com as histéricas de Freud, a fugidia passante baudelairiana, a demoníaca Lolita, de Nabokov, e, com essa que talvez seja a maior ninfa da literatura brasileira, a ambígua Capitu e seus tempestuosos “olhos de ressaca”; a ninfa não cessa de fluir e refluir, atravessando o tempo e assumindo múltiplas identidades.
É ela, igualmente, que se insinua nas danças com serpentes vivas dos índios hopi em que sobrevive o mesmo e sempre outro enlace trágico de desejo, violência e morte dos cultos a Dionisio da Antiguidade, e que depois reaparece em certas esculturas de Maria Martins, e ainda, no inebriante e extático movimento dos parangolés de Hélio Oiticica.
Os poetas brasileiros
Na poesia de Manuel Bandeira e Donizete Galvão, a Ninfa surge como um desdobramento da dimensão da perda, do espaço da morte, da noção de ausência essencial aos dois poetas por ser justamente uma imagem desde sempre perdida, que se mostra furtando-se, cuja experiência é aquela do fugidio, do entrevisto, que ambos os poetas tematizam tão bem. Ao mesmo tempo, por ser uma imagem sempre dupla, ambígua, intervalar, a Ninfa reflete a própria tensão que atravessa ambas as obras, onde as fronteiras se esfumaçam e tudo passa a ser visto de maneira dupla. Ao seguir de perto a lição de Nietzsche, a poesia de Bandeira soube ver Apolo em Dionísio, Dionísio em Apolo, suspendendo-se, como a de Donizete, entre humor e melancolia, corpo e cosmos, presença e ausência, vida e morte, desejo e dor.
Na poesia de João Cabral de Melo Neto e Carlito Azevedo, a Ninfa surge como sintoma a corroer, perturbar a dimensão vital, erótica, essencial à poesia de ambos. Ela aparece como a potência do fluido que jorra tensa, contida, na rígida forma cabralina, perfurando por dentro a sua obsessiva vontade de construção e, em Carlito Azevedo, ela surge quase no limite de uma desfiguração, decaída, desdobrada em várias formas (passantes, banhistas, manifestantes), um hipotético e inquietante sintoma em que parece se converter a sua própria obra, quando pensamos que tal obra existe de dentro do espaço da morte, isto é, existe como obra-fantasma, obra nínfica, se tornando ela mesma um fluxo de desejo que nos chega de dentro de um mundo de aparências onde tudo existe como hipótese.
A eternidade efêmera que se desprende desse ser de relance, convulsivo, metamórfico e indomável, que aparece apenas para desaparecer, deixando um rastro de aroma antigo, parece estar refletida no que escreveu Proust, “os mais belos paraísos são aqueles que perdemos”, e também no verso de Drummond que compõe o título do livro: Amar, depois de perder.
Em sua aparente simplicidade, capaz de dizer algo a qualquer pessoa, esse verso, que surge ao final do poema “Perguntas”, de Claro Enigma, cristaliza o paradoxo fundamental do pensamento sobre a imagem e, por consequência, sobre a Ninfa. Diante da imagem, estamos sempre diante do perdido, diante do que não mais está, mas do que existe justamente de dentro dessa ausência, de dentro dessa perda irremediável. É por meio da imagem, mais especificamente, da memória em sua espessura que é tanto íntima quanto histórica, que o passado se abre para nós como uma inesgotável possibilidade no presente.
Onde está a Ninfa?
A transposição da ninfa de uma criatura mitológica ligada à possessão, como mostrou o pensador italiano Roberto Calasso, para uma forma de intensidade é obra do historiador da arte alemão Aby Warburg que fez da Ninfa, antes de tudo, um personagem teórico que encarna alguns de seus conceitos fundamentais. Entre eles, estão a ideia de Pathosformel (“fórmula de pathos”, a emoção expressa em um gesto que se repete e se singulariza no tempo) e a de Nachleben, a vida póstuma das imagens, pensada por Warburg a partir da sobrevivência dos gestos da Antiguidade ao longo da cultura ocidental e expressa em um dos seus projetos principais, o atlas de imagens Mnemosyne, essa constelação de imagem e tempo.
A Ninfa de Warburg, assim como a figura mitológica da antiguidade, é uma imagem altamente ambígua, que se constitui de uma montagem e uma tensão de potências opostas. Ao encarnar o conceito de Nachleben, sendo, como escreveu o filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, a “imagem sobrevivente” por excelência, a Ninfa atravessa o tempo, encenando sucessivas metamorfoses (serva florentina, Salomé dançante, anjo protetor, mênade delirante, Vitória romana, Vênus impassível). A “forma de afeto”, ou, o modelo da Ninfa vindo das mênades pagãs – que se constitui do exuberante drapeado do vestido a funcionar como um índice de desejo e do detalhe do passo dançante – é a mesma e sempre é outra, fazendo da Ninfa uma imagem de natureza dialética, como pensada por Walter Benjamin, um cristal de tensões, embates, paradoxos multiplicados ao infinito, que, nos termos de Giorgio Agamben, é a própria “imagem da imagem” por ser ela, antes de tudo, aquela que vive depois de morta, como uma espécie de fantasma do tempo.
Foi ao ver uma figura feminina em movimento em um dos afrescos de Domenico Ghirlandaio, O Nascimento de São João Batista (1486-1490), na igreja de Santa Maria Novella, em Florença, que Warburg reconheceu na leveza que se desprendia daquele tecido azul esvoaçante cujas dobras se alongavam, perdiam-se e giravam em pleno ar, que era quase como o próprio céu ou mesmo o mar, a sobrevivência das mênades dançantes esculpidas nos vasos, sarcófagos e baixos-relevos da Antiguidade pagã.
“Às suas costas, próxima à porta aberta, corre, ou melhor, voa, ou melhor, paira, o objeto dos meus sonhos, que começa, porém, a assumir dimensões de um fascinante pesadelo. Trata-se de uma figura fantástica, ou melhor: de uma serva, antes, de uma ninfa clássica com um prato de maravilhosos frutos exóticos na cabeça, que entra no quarto tremulando o seu véu”. (Jolles, 2018, p. 68)**
No manuscrito Ninfa fiorentina, texto fundamental para compreender as principais questões ligadas à Ninfa de Wargurg, que se apresenta como uma correspondência entre o historiador da arte e o linguista André Jolles, a Ninfa surge como uma “deusa pagã no exílio”, expressão que destaca a sua condição de estrangeira, portanto, de imagem por excelência, seu anacronismo, e que foi formulada por Warburg a partir do choque de temporalidades que se encena no afresco de Ghirlandaio. Com a entrada dessa bela figura que rouba a cena e põe em funcionamento um deslocamento de intensidades, um outro tempo se infiltra na imagem, escapa pelas suas bordas, fraturando toda suposta unidade da cena. No manuscrito, Jolles expõe a perturbação que lhe foi causada por aquela aparição de natureza sintomática, oscilando entre duas sensações: lembrança (“Onde já a vi?”) e estranhamento. As hesitações de sua fala deixam ver a dificuldade em apreender em uma única identidade essa figura que existe “em estado de névoa”, para usar uma bela imagem de Benjamin, movida em seu “caminhar ligeiro” por um desejo que, ao se alimentar da presença de sua ausência, está sempre a recomeçar.
“No fundo, meu caro amigo, o que há de mal? Apaixonamo-nos uma única vez na vida. E, quando pensamos estar apaixonados mais vezes, na realidade, vemos apenas outras faces do mesmo prisma. Modificamos os objetos, mas o enamoramento permanece uno e, em si, único. Assim, dei-me conta, em seguida, de que, em muitos aspectos da arte que amei desde sempre, existiu invariavelmente algo da minha ninfa” (Jolles, 2018, p. 69)**.
“A Ninfa, nesse sentido, não é algo idealizado e abstrato, quase intocado, que não se comunica com a realidade imediata, o mundo sensível; ela é uma Pathosformel, uma imagem dialética que ultrapassa a oposição entre forma e intensidade, entre ideia e imagem, entre concretude e vazio, entre ver e perder, porque ela se suspende no intervalo entre uma coisa e outra, existe justamente na fratura, no abismo, joga com as contradições e é capaz de nos abrir para a eternidade que se desprende das coisas efêmeras. Benjamin soube ver, de dentro da sutileza, da coragem e da originalidade de seu pensamento, que as singularidades, as formas, as coisas do mundo, nos levam ao que há de mais intangível, nos trazem o que está mais distante. “O eterno de qualquer modo, é, antes, um drapeado de vestido do que uma ideia” * Imagem dialética *.” (Trecho do livro)
* Georges Didi-Huberman, Ninfa Moderna. Paris: Éditions Gallimard, 2002
**Aby Warburg, A presença do antigo. Organização, introdução e tradução: Cássio Fernandes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018