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A desumanização dos negros e a cumplicidade com o capitalismo

(imagem fondo antiguo de la biblioteca de la universidad de sevilla – ccl – pd)

.Por Ricardo Corrêa.

“O capitalismo requer desigualdade, e o racismo a consagra.”  Ruth Wilson Gilmore

Nos encontros com os meus amigos negros é bastante comum conversamos sobre histórias de resistência e sofrimento, pois os obstáculos impostos pelo racismo, em nossas vidas, impedem que a discussão caminhe em outra direção. Nós, que somos negros, quando tomados pela consciência racial nunca mais observamos o mundo com a mesma naturalidade de antes; utilizamos as questões raciais em todas as análises sobre a realidade.

O racismo é estrutural e estruturante, transformador das relações sociais, e tão complexo que mesmo passado mais de um século da abolição da escravidão consegue adequar-se aos novos contextos históricos, sem perder o espírito do período escravagista. Isto é, a sanha desesperada na desumanização e consequente violência contra os negros. Esse pensamento se sustenta em função do uso de estigmas, e estereótipos, que a sociedade reforça na distorção da imagem das pessoas negras; como resultado, alcança a subjetividade das pessoas brancas que apreende signos racistas. Por esse motivo, a disposição mental dos brancos naturaliza as violências contra os negros e estimula-os a praticarem atos racistas.

Nesse sentido, lembro-me da reflexão do psiquiatra Frantz Fanon (1952) quando apontou a existência de teorias que colocavam o negro como o elo entre o homem e o macaco, demonstrando assim o estabelecimento da desumanização dos negros, que, a propósito, ganhou várias facetas com o racismo científico no início do século 20. Os resultados são devastadores, testemunhamos a barbárie não comovendo a sociedade, e, em algumas situações, sendo tratadas como entretenimento.

É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência. Talvez seja essa a maior capacidade do racismo. Conseguir naturalizar a dor negra como consenso que não implica as pessoas num dilema ético. É a operação que tranquiliza o sono das elites, enquanto o genocídio abate um contingente tomado como abjeto, menor, descartável. É a herança mais bem guardada dos escombros na escravidão no Brasil e na Diáspora. (FLAUZINA, 2017)

Agora, vejamos o absurdo: no ano de 2020, 6.416 pessoas foram mortas pelas mãos de agentes policiais, sendo que 78,9 % do total eram pessoas negras; e dos 759. 518 encarcerados, nesse mesmo ano, os autodeclarados negros eram da ordem de 66,3%. Os dados escancaram a existência do racismo empenhado no cerceamento da liberdade das pessoas negras e aniquilação de suas vidas.(1) Eu sempre me pergunto em que momento a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, expressos no artigo 5° da Constituição Federal de 1988 (CF/88) será uma realidade para a população negra.

Considero que o encarceramento e as mortes são apenas o ápice de um sistema destruidor de corpos negros, mas não as únicas violências. Os negros que não se enquadram nessas estatísticas constituem a população mais pobre e miserável do país. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) analisando a desigualdade racial no período de 1989 – 2019 constataram que a desigualdade racial de renda entre brancos e negros permaneceu basicamente a mesma; em termos gerais, a renda média dos brancos continuou duas vezes maior que a dos negros. (2) Por consequência, diversos infortúnios acompanham os negros, como disse o pan-africanista Abdias do Nascimento (1978)

Se os negros vivem nas favelas porque não possuem meios para alugar ou comprar residência nas áreas habitáveis, por sua vez a falta de dinheiro resulta da discriminação no emprego. Se a falta de emprego é por causa da carência de preparo técnico e de instrução adequada, a falta desta aptidão se deve à ausência de recurso financeiro. Nesta teia, o afro-brasileiro se vê tolhido de todos os lados, prisioneiro de um círculo vicioso de discriminação − no emprego, na escola − e trancadas as oportunidades que lhe permitiriam melhorar suas condições de vida sua moradia, inclusive. (p. 85) 

O Estado deveria prover políticas públicas que produzam resultados de impacto profundo e consistente, possibilitando acabar com o privilégio branco e as condições de miserabilidade da população negra. Mas, não bastam políticas de reparação, as ações enfrentando o capital são, igualmente, importantes; em suma, urge a destruição da exponencial acumulação de riqueza da elite econômica branca para que possamos conseguir a redistribuição de renda.

Compreendamos que inexiste derrocada dos privilégios que não perpasse pelo fim dos inúmeros mecanismos políticos e jurídicos que somente alargam o abismo social e operam na contenção política dos negros. Logo, a luta antirracista e a luta anticapitalista estão, umbilicalmente, conectadas e não devem ser dissociadas “o racismo deve ser enfrentado não apenas na dimensão comportamental e relacional, mas fundamentalmente como mecanismo estruturante do autoritarismo social que sustenta as várias lógicas do capital.” (OLIVEIRA, 2016).

A exclusão racial não tem acanhamento, e a branquitude segue empenhada na manutenção do seu projeto de dominação com a explícita cumplicidade entre o racismo e o capitalismo. Ou empreendemos organizações negras em todos os setores da sociedade, da periferia aos espaços acadêmicos, dialogando uns com os outros, na construção de estratégias políticas que não ceda às armadilhas do capitalismo e avancemos frontalmente contra o racismo estrutural. Ou continuaremos sendo desumanizados, e deixaremos às próximas gerações desafios cada vez mais complexos de serem superados.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.  

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. São Paulo: Paz e Terra, 1978. 

OLIVEIRA, Dennis. Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. Dossiê: Marxismo e Questão Racial. Margem Esquerda – Revista da Boitempo nº 27. São Paulo: Boitempo, 2016.

PORTAL GELEDÉS. Entrevista com Ana Luiza Flauzina. (2017) Disponível em: https://www.geledes.org.br/para-entender-o-nosso-racismo/. Acesso em: 22 ago. 21

Santos, Raquel Amorim dos e Silva, Rosângela Maria de Nazaré Barbosa e. Racismo científico no Brasil: um retrato racial do Brasil pós-escravatura. Educar em Revista [online]. 2018, v. 34, n. 68. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/er/a/cmGLrrNJzVfsKXbPxdnLRxn/abstract/?lang=pt#>. Acesso em: 22 ago. 21

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