.Por Bruno Beaklini.
No domingo, 14 de fevereiro, faleceu o ex-presidente argentino, ex-senador e ex-governador da província de La Rioja, Carlos Saúl Menem (1930-2021). O mais emblemático traidor da política argentina é filho de um casal de imigrantes sírios de credo islâmico sunita, Saúl Menehem e Mohibe Akil. O sobrenome foi “simplificado” pelo setor de Migrações e transformou-se em Menem (https://www.pagina12.com.ar/323746-murio-carlos-menem?fbclid=IwAR2FtPb9msxFAOwMrddz-ye7S5g2IHMjf2VtNA-phI3LkSnYLDfXPnT7OXg).
Na juventude até a década de 1980, Menem foi peronista, tentando ser leal ao legado de Juan Domingo (ao menos no campo da justiça social e da soberania nacional e popular da Argentina). O seu talento inicial era de “equilibrista” político, pois manteve os vínculos com a colônia árabe-islâmica síria e se converteu ao catolicismo conforme a tradição das carreiras profissionais argentinas. No peronismo, bambeou entre simpatias para a esquerda peronista e ao “peronismo sem Perón” e a linha “do velho”, vinculada às 62 organizações históricas da corrupta direita peronista.
Carlos Saúl realizou duas traições. A primeira e mais visível é junto ao patrimônio difuso do povo argentino, relacionado à independência do país e às condições materiais de vida das maiorias argentinas. Quando Menem afirma as relações carnais com os Estados Unidos (https://tede2.pucsp.br/handle/handle/20341), abandona uma posição anti-imperialista e passa a atuar como “vende pátria”, não reproduzindo sequer a hipocrisia dos peronistas de direita de triste memória. Já a segunda traição se torna visível quando adere à coalizão que manda tropas para a primeira invasão do Iraque (https://www.eltiempo.com/archivo/documento/MAM-59302). Essa é a ponta da história, mas não o seu desenrolar.
Árabes-peronistas e heróis da resistência
Envar “Cacho” El Kadri (1941-1998) foi um jovem pioneiro da resistência peronista e, posteriormente, da esquerda deste setor político (http://ficip.com.ar/cacho-historia-militante/). Advogado, jornalista, cineasta e guerrilheiro, filho de pai libanês, lutou em situações de guerrilha rural e urbana. No exílio, partindo em 1975 (no Estado de Guerra Interna de Isabelita, a partir da ditadura militar de março de 1976, teve experiência de combate ao lado da resistência palestina na primeira fase da Guerra Civil Libanesa (1975-1990). Longe de ser o único, Cacho era um exemplo dos jovens de origem árabe que se identificaram tanto com o peronismo como com o período de auge do pan-arabismo.
Menem era de outra geração, nunca foi um “muchacho de Perón”, mas circulava muito perto dos batedores de bumbo, jovens apoiadores de heroicos sindicalistas anônimos que resistiram ao “golpe gorila” de setembro de 1955 (https://www.infobae.com/sociedad/2019/09/16/16-de-septiembre-de-1955-una-violenta-revolucion-libertadora-desaloja-a-un-peron-hastiado-del-poder/). A integração da comunidade árabe na Argentina (que foi distinta da colônia no Brasil) contou com um grande contingente de “brimos sunitas”, e a aproximação foi iniciada pelo próprio Juan Domingo Perón, quando esse se propõe a integrar a primeira geração de filhos de imigrantes na política Argentina. O vínculo com a terra natal estava assegurado e a lealdade acima de quase tudo já era o perfil daquela juventude na segunda metade da década de 1940.
A relação com a Grande Síria e o Monte Líbano estava mantida, sendo que o mandato imperialista francês no Levante teve início em 1922. Antes da chegada dos franceses houve muita luta, quando da fundação do Reino Árabe através da junção dos vilayets (primeiro nível administrativo Otomano após 1867) de Beirute, Aleppo, Dayr az-Zor, Damasco e o mutasarrıf (governo autônomo de uma região distrital com o Poder Executivo diretamente indicado pelo sultão) de Jerusalém. Infelizmente, o Estado árabe durou porque nossos patrícios perderam a derradeira Batalha de Maysalun, em julho de 1920. A previsível traição aos hachemitas materializa a conspiração Sykes-Picot-Sazanov, o acordo secreto entre as potências aliadas que dividiu as províncias otomanas no Levante e na Mesopotâmia, além de se apoderar do território hoje compreendido pela República da Turquia.
Entre julho de 1925 e junho de 1927 houve a Grande Revolta Árabe-Drusa síria. A proclamação da república não tardou, chegando em 1930, mas a tutela continuava. O recuo da prepotência francesa se dá em 1946, antecipando o furacão pan-arabista que iria responder às agressões sionistas e o conluio com o mandato imperialista britânico na Palestina Ocupada. Durante o século XX, boa parte dos vínculos das famílias de imigrantes radicadas na Argentina se manteve com a terra ancestral, incluindo os Menem. Carlos Saúl se casa com Zulema Yoma após os dois, argentinos filhos de sírios, terem se conhecido na cidade de Yabrud. Os vínculos são muitos, ambos provêm de La Rioja e têm origens de clãs amigos na Síria.
Falando em vínculos e lealdades, Perón conseguiu a adesão de líderes e associações árabes argentinas. Em 1948, de 200 deputados justicialistas, 25 eram de origem patrícia (https://elpais.com/internacional/2018/11/23/argentina/1542983379_979721.html). Depois de setembro de 1955 até a debacle da insurgência contra a ditadura gorila e entreguista instaurada em março de 1976 (encerrada em dezembro de 1983), brimos e brimas sacrificaram suas vidas peleando nas organizações de resistência, estando em maior volume na esquerda peronista, tal é o caso da família Haidar. Mirta Malena (professora, http://www.robertobaschetti.com/biografia/h/4.html) e Adriana Isabel (médica, http://www.robertobaschetti.com/biografia/h/3.html) foram sequestradas e assassinadas pelos militares, transformando-se em mártires da Organização Político-Militar Montoneros. Seu irmão Ricardo René Haidar (1944-1982, https://www.espaciomemoria.ar/2019/01/08/ricardo-rene-haidar/) participou da contra ofensiva montonera até ser sequestrado e desaparecido no Brasil, em 1982, com a repressão ainda atuando através da Operação Condor.
El Kadri, a família Haidar e dezenas de combatentes que foram treinar e lutar nos acampamentos palestinos no Vale do Bekaa e no sul do Líbano (https://www.agenciapacourondo.com.ar/dossier/montoneros-y-palestina-la-parte-de-la-historia-que-faltaba) formam uma epopeia do vínculo árabe-latino-americano. Suas jornadas merecem vários artigos de difusão em língua portuguesa. Neste texto expus apenas alguns elementos para exemplificar a dupla traição de Menem.
O duplo traidor
Infelizmente, o duplo traidor não é exceção nem na Argentina (ou no Brasil) e menos ainda nas monarquias do Golfo. No ano de 2000, o então presidente Fernado de la Rúa (aquele que fugiu pelo telhado da Casa Rosada quando da insurreição popular de dezembro de 2001) e o próprio Carlos Saúl receberam a Salman bin Abdulaziz Al Saud, antes do príncipe regente tornar-se rei da Arábia Saudita. A Presidência de Menem (1989-1999) doou o terreno para uma gigantesca mesquita no valorizado bairro de Palermo, o que não implica em problema algum. Mas, além disso, avançou na aliança que ele próprio ratificara quando pateticamente a Argentina, sob seu comando, enviou duas embarcações de guerra para a primeira invasão do Iraque.
De Menem poderíamos escrever centenas de páginas e ainda assim sobraria assunto para interpretar quem foi eleito com promessas de aliança com o Mundo Árabe e logo se torna servo de Bush pai. O mesmo se deu na política nacional. Fez sua campanha de 1989 com o visual do caudilho Facundo Quiroga e prometendo. “Sigam-me, não vou decepcioná-los argentinos” (https://www.perfil.com/noticias/politica/siganme-que-no-los-voy-a-defraudar-y-otras-20-frases-inolvidables-de-carlos-menem.phtml). Menos de um ano após assumir deu início a uma privatização absurda, liquidando o patrimônio nacional, afundando mais da metade da população abaixo da linha da pobreza ao final de seu mandato.
Felizmente, o heroico povo argentino – com a valorosa contribuição de nossos patrícios – tem trajetória histórica e capacidades de resistência muito acima dos traidores. Menem não foi o único, vide o empresário Alfredo Yabrán (outra figura sinistra que também temos de escrever, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft23059806.htm), mas perde de goleada diante do heroísmo e martírio de filhas e filhos de árabes que dedicaram suas vidas para a libertação da Argentina. Como diz uma das canções montoneras, a “gloriosa juventude argentina” sempre fará, com os ossos de seus detratores e tiranos, escadas para chegar aos céus das mártires.
Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio (www.monitordooriente.com).
Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini) é cientista político e professor de relações internacionais de origem árabe-brasileira, editor dos canais do Estratégia & Análise.blimarocha@gmail.com | facebook.com/blimarocha
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