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O vírus é um tratamento de choque para a mentalidade bolsonarista

Vírus, neoliberalismo, bolsonarismo e seu fim

.Por Roberto Roque Lauxen.

1 O vírus e o neoliberalismo

A “consciência do vírus”, ainda que sob o afeto do medo, revela-nos uma condição limite de nossa existência em sociedade. Sob o efeito destrutivo do vírus tudo perece relativizar-se, tudo perde seu valor absoluto em proveito da ordem do “sem preço”, imune ao raciocínio econômico. Essa situação excepcional dá sentido a um valor ainda maior: a vida como mera sobrevivência (zoon) e, junto dela, a vida política (bios), através da união na luta para vencer um inimigo mortal e invisível, o vírus. Essa união funda certo ideal comunitário de vida, ainda que sob o influxo de uma espécie de “guerra” a um inimigo invisível.

(foto orlando kissner – fp)

Quando as políticas neoliberais apostavam na implosão das bases do que é comum a todos – educação pública, saúde pública, seguridade social – eis que tudo parece reconfigurar-se no horizonte, por conta do estado de exceção instaurado pelo vírus. Mas a luta contra o vírus também contamina a orientação política vigente em seu modelo estrutural.

A brecha do estado de exceção possibilitou a entrada de um novo “vírus” de dimensões globais, que poderá corroer qualquer modelo econômico que seja imune à responsabilidade de proteger as pessoas, que possa minar tudo o que é da ordem do comum, ou que queira propor uma privatização exacerbada de todas as esferas da vida. Uma espécie de consciência coletiva se reascende no horizonte em meio à dor e aos escombros do que pode vir a ser a pandemia do Covid-19 no Brasil e no mundo.

Um consenso se formou em torno de uma pauta mínima de segurança social, que foi votada no dia 26 de março no Brasil. O Estado diz: “fiquem em suas casas!”, em contrapartida, “nós cuidamos de vocês” (com todas as implicações biopolíticas desta alternativa), porque estamos todos no mesmo barco, “cada um deve fazer a sua parte” e cada cidadão importa.

Esse senso coletivo reverberava no discurso sensato dos governadores para enfrentar a crise – rechaçada pelo bolsonarismo e seu Capitão – vindo a culminar nas políticas de exceção (confinamento, redução de circulação, fechamento do comércio, etc.), uma espécie de estado de “guerra” onde é dever do Estado proteger seus cidadãos, e a ordem é: fiquem em suas trincheiras, “não saiam de suas casas!”.

Assim, toda uma lógica vigente parece ser revertida. No exato instante em que se impõe entre as medidas de exceção a ausência nos postos de trabalho (não essenciais), reconhece-se o valor do trabalho humano, ele próprio como o verdadeiro criador de valor, um valor irredutível à “mercadoria” ou, ao menos, transformando-se numa “mercadoria rara” (sem preço); de qualquer modo, sem ele nada funciona, tudo para, na contramão dos discursos de precarização do trabalho e da lógica empresarial de que “É horrível ser patrão no Brasil”.

O vírus põe a questão sobre quem é o sujeito da economia na luta entre capital e trabalho: a lógica neoliberal sai em defesa do empreendedorismo e do empresário, o vírus impõe sua regra, uma vez que ele afeta pessoas e não máquinas, exige o confinamento da força de trabalho e, assim, põe em jogo a questão de quem vai operar as máquinas.

Além disso, o vírus aparece como contraponto derrisório da “mão invisível” do mercado, como se ela saísse de sua invisibilidade e se mostrasse às claras em sua fragilidade, “mas afinal, para que serve acumular vários dígitos em contas e investimentos se somos acometidos pelo vírus?”

A reprodutividade infinita do capital parece encontrar seu limite na possibilidade da morte como horizonte, onde todo o valor monetário se transforma em cinzas e o dinheiro em mero papel. A invisibilidade do vírus lança a possibilidade de atingir quem quer que seja, cria uma possibilidade infinita de “destruição invisível” que se alastra infectando o valor monetário e o mercado, tal como a “mão invisível” pretende ser autorreguladora do mercado.

Talvez seja exagerado depositar um poder revolucionário ao vírus, mas uma analogia é possível: ele aparece como “um ente invisível” às pessoas, ao sistema e ao status quo, criando uma espécie de “consciência coletiva” que se equipara à força negadora e revolucionária contra o capital, tal como outrora o trabalho humano e a classe trabalhadora ocupavam o lugar do sujeito histórico (Marx). Na ausência da consciência de classe eis que surge a “consciência do vírus” na contracorrente do capitalismo.

É sintomático que Guedes apareça pouco nos noticiários, ele tem pouco a dizer sobre o vírus, que carrega em si também um potencial destrutivo para seu castelo de areia. O vírus questiona todas as teses de sua política neoliberal destrutiva àquilo que é da ordem do comum, do público, àquilo que nos torna uma comunidade ou nação – muito embora o vírus ultrapasse o estado nação enquanto pandemia globalizada, mas, por isso mesmo, é um “vírus” global do sistema, anti-neoliberal, como o vírus da Matrix. O vírus é capaz de minar a tese neoliberal em curso, e isso pode ser evidenciado numa questão simples: quem poderia pagar vinte dias de UTI num hospital privado? A fraqueza do neoliberalismo para enfrentar a crise do vírus vem à tona quando se minimiza a função do estado, quando se exige o Estado máximo.

O vírus aparece no momento em que a ideologia neoliberal transformava a consciência da classe trabalhadora na consciência isolada do Self-made man, com a destruição das leis do trabalho e da seguridade social, porque o vírus impõe sua regra, contra tudo e contra todos. O trabalhador cindido, no seu isolamento, não é a mais a consciência isolada do Self-made man neoliberal, na sua vida privada e, também, na sua privação.

Com o risco de contaminação, ele não pode ser privado da ajuda do estado, que exerce um controle “de fora” de seu isolamento e impõe sua força de proteção mesmo contra sua vontade e através do exercício legítimo da força. É quase como um tratamento de choque para a mentalidade bolsonarista que faz apologia ao estado mínimo – talvez aí se explique as reações quase patológicas de alguns adeptos contrários ao confinamento.

Não há como normalizar e minimizar a crise econômica gerada pelo vírus, não há alternativa além do confinamento para evitar sua propagação, as curvas de contágio e a experiência nos alertam já sobre as decisões equivocadas, por exemplo, do prefeito de Milão na Itália, não há como voltar atrás contra o confinamento. A crise já bate a porta não apenas do trabalhador, mas do empresariado e não vai adiantar, neste caso, a “histeria”, como gosta de repetir o presidente em relação ao vírus.

Paira uma dúvida sobre quem vai pagar a conta da crise gerada pelo vírus. Por um lado, a lógica neoliberal parece ter sido mantida por Guedes através de sua política de saneamento bancário, sem contrapartida social dos bancos, que, ao fim e ao cabo, poderão inclusive lucrar ainda mais com a crise. Ou seja, de um lado, mantém-se intacta a voracidade do capital e, de outro, pode-se dar continuidade à socialização da desgraça na ponta do trabalho, como ameaçam os defensores do “volte ao trabalho” e da economia acima de tudo.

Isto é um sintoma reativo do empresariado que percebe que a crise não vai atingir apenas o trabalhador, novamente a inversão de perspectiva. Parte desta histeria é manifesta na crueldade e ameaça de um discurso empresarial que pretende aterrorizar mais do o vírus: “vou fechar as portas”, “vou demitir 20 mil”. Na contramão desta revolta o congresso não teve escolha e votou uma proposta emergencial completamente anti-neoliberal, à revelia de Guedes, aprovando a Renda Básica Mínima por três meses.

Por outro lado, de forma inédita no Brasil, circulam projetos que visam colocar em cena o sacrifício de quem nunca foi exigido nenhum sacrifício, uma espécie de socialização do prejuízo com os ricos, por exemplo, a taxação das grandes fortunas – sem impor mais uma agenda “a la Guedes”, alguma nova “reforma” que venha atingir os mais vulneráveis –, mesmo assim, apesar de inédito no Brasil, nada de novo e de revolucionário se anuncia com esta medida no que tange alterações profundas na lógica neoliberal – mas é um começo – apenas se introduz uma medida já praticada em qualquer parte do mundo.

O que de fato conta como potencial risco ao neoliberalismo é a noção de Estado forte, protetor da sociedade, que ganha corpo em todo o mundo e põe em jogo outros valores como o senso de coletividade, de humanidade e de solidariedade, como parece anunciar os esforços para conter o vírus.

Para além das perdas, do saldo de mortes, talvez haja um saldo positivo ao se aplacar o Covid-19: a rediscussão do neoliberalismo em escala global. Mas, o que pode representar o saldo mais positivo da tragédia é que talvez se aplaque o vírus do bolsonarismo. Em todos os casos, algo de diferente e inédito se vislumbra no horizonte político e econômico depois da pandemia, não sabemos o que será, mas depois da quarentena, alguma coisa será aplacada no Brasil, junto com o vírus, o bolsonarismo.

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Roberto Roque Lauxen é doutor em Filosofia e Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) .

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