Cidades: quantos tempos e lugares?
.Por Francisco Foot Hardman.
De Pequim
Cada lugar que escolhemos para viver é uma marca do tempo. Tempo de nossa curta vida no planeta e de nossa memória pessoal ou comunitária. Mas, também, percebamos ou não, cada lugar escolhido ou visitado carrega marcas das longas durações do tempo, dos fios que se estendem até passados perdidos ou eras desconhecidas. Até culturas extintas, de que são sinais indecifráveis algumas pedras empilhadas pelo acaso de mãos operosas ou pela fúria dos elementos naturais. Tempos referidos em livros didáticos como “tal século”, “aquela década”, “o período de”.
Na velocidade desmemoriada da sociedade tecnológica que planeja, a cada dia, a obsolescência dos objetos sob falsa aparência de inovação, precisamos aderir a novas modas que se sucedem no ritmo de sua inutilidade. Inclusive e até, especialmente, modas acadêmicas. Nosso desejo de explicação lógica e nossa arrogante ilusão de imortalidade levam-nos a todo instante a renomear o mesmo. Mas alguns lugares permanecem, e suas vias tortas, praças baldias e paredes manchadas sinalizam tempos sobrepostos e tantas vezes insondáveis.
Numa civilização tão antiga e em território tão imenso, como é o caso da China, o viajante sempre encontrará uma formidável combinação de temporalidades, inscritas em diferentes lugares e paisagens, talhadas nas faces e nas expressões corporais das multidões que, em tempos normais, atravessam febrilmente todo o país. E que promovem o maior deslocamento populacional planetário durante seu Ano Novo Lunar, processo traumaticamente abortado neste final de janeiro.
Continuo a perseguir sinais dessas temporalidades coexistentes. Fugindo do meu confinamento, chego ao bairro de Andingmen, central, onde há lojas variadas, cafés e se sucedem inúmeros hutongs, esses becos, ruelas ou vielas tão antigos e característicos da vida popular em Pequim, hoje a maioria deles reurbanizados para abrigar hotéis e hostels, restaurantes e cafés ocidentais, moda em alta por aqui. Mas, majoritariamente, perduram moradias de famílias e ateliês de serviços, de artesãos e de artistas. Nos dias febris, que são todos os dias em Pequim afora este tempo agora parado da febre feia, os hutongs são cenários de gentes, bicicletas e triciclos frenéticos dos entregadores, a alma da circulação de mercadorias na China. Mas, cadê?… Estão fechados, guardas voluntárias improvisam porteiras nas entradas, agora restritas aos moradores com cartão.
Com minha amiga descolada e um pouco cara-de-pau, avançamos, e não me pergunte como, estamos dentro de um hutong, ou melhor, numa rede deles: mas quem nos guiará aqui neste labirinto, já que, semidesertos, nenhum percurso se pode fazer no fluxo da multidão? E, de repente, irrompem os nossos improvisados guias:quatro gatinhos que parecem amestrados por sua zelosa dona. E um coral de pássaros, afinados no mesmo compasso, revoam em parceria com os gatos, os dois conjuntos donos do tempo da cidade. Isso, sem dúvida, parece alentador.
A ponto de que, animados, dirigimo-nos para uma das entradas do parque Beihai, com seus quase 70 hectares e um belíssimo lago que o circunda todo, dividido em três partes intercomunicantes por várias pontes: Beihai, Zhonghai e Nanhai, literalmente, “Mar do Norte”, “Mar Central” e “Mar do Sul”. Encravado no coração de Pequim, é, a justo título, um cartão postal da “Capital do Norte”, a tradução de Beijing.
Nem gatinhos amestrados, nem pássaros na revoada da nova estação. Todas os acessos fechados, barrados no parque. Riram muito os guardas voluntários de uma porteira: desacostumados a pedidos insistentes, negaram sempre, mas com desafetada simpatia. Ficaram fotos de um entardecer maravilhoso do grande lago ao fundo. Quase era possível esquecer dos dias difíceis que o país enfrenta. Já esquecíamos de ter sido barrados no lago. Porque, afinal, Beihai sobrepujava os tempos e as passagens.
E de volta ao hutong, num pequeno empório de importados, a garrafa de vodca da Breslávia, Polônia, com 96 graus de teor alcoólico, havia se convertido em sanitizador de todo o estabelecimento. Que poder de invenção! Com tal dosagem nenhum coronavírus vai querer se meter a besta.
Mas, igualmente longe da histeria e paranoia a que muitos sucumbem, essa outra pequena notícia na imprensa chinesa pareceu realmente incrível. Há poucos dias, quando equipe reforçada e paramentada de higienizadores chegou ao antiquíssimo e colossal mercado municipal de Wuhan, ponto bem provável de nascedouro da epidemia, descobriram lá dentro, escondida há já quase dois meses, uma família com quatro pessoas – um casal, uma menina e um idoso.
Contra todas as apostas mais arriscadas de jogo de azar, contra o mau agouro representado pelo número quatro no imaginário popular chinês (cuja pronúncia é similar à da palavra “morte”), contra todos os avisos sensatos que levaram ao fechamento do mercado, uma família não só escolheu se esconder ali, como, sendo lá também local de trabalho de um de seus membros – ao que consta, a mulher – preparou um dos cômodos naquele vasto e ora deserto pavilhão, como abrigo e morada para ela e para os seus.
Não, por favor: guarde com você as perguntas óbvias. Seria precipitado e pretensioso entender as razões. Fiquemos aqui. E, ao contrário do que poderiam apregoar mercadores de má sorte, a família está saudável e sem nenhum sintoma, e numa rara imagem que me foi possível vislumbrar, caminham impassíveis na saída do mercado, rumo a essa cidade tão sofrida, que certamente saberá acolhê-los, como os filhos de Wuhan soem ser. Como bons habitantes dessa metrópole da China Central, todos filhos do rio Han, maior afluente do Yangtze. Já que o sol e as águas de março podem conduzir a caminhos mais felizes. (Publicado originalmente no JU – Unicamp)