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Pôr bigodinho de Hitler em Bolsonaro só serve para esconder o que moldamos com nosso próprio barro

Antes fosse o recuo de um nazista

.Por Alessandra Caneppele.

No primeiro ano do governo Bolsonaro assistimos atônitos aos mais absurdos descalabros e crimes perpetrados pela trupe escolhida pelo nosso presidente – e vimos o governo mostrar-se totalmente refratário a castigar com demissão seus ungidos. E no primeiro mês de 2020 a oposição comemora uma reclamação prontamente atendida: Roberto Alvim, secretário da Cultura do governo Bolsonaro, cai.

(foto de vídeo – zorra)

Devemos comemorar essa queda? O que aprender com esse episódio sobre a associação comumente feita entre o governo Bolsonaro e o nazismo?

Um pequeno artigo no qual Jordi Dean retoma resumidamente a análise de Zizek sobre o nazismo (https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/nazismo-banalidade-do-mal-ou-gozo-dos-carrascos/) pode nos ajudar a evitar uma assimilação fácil entre bolsonarismo e nazismo – e, por conseguinte, a suposição cômoda de que a vitória da queda do tal secretário nazista mostraria que estamos conseguindo resistir como sociedade aos avanços mais nefastos do nosso governo nazista.

No citado artigo o autor resume as teses que Zizek, utilizando-se do que Lacan cunhara conceitualmente como discurso do mestre, postula sobre a Alemanha nazista. Nessa interpretação do nazismo, tão importante quanto a figura do mestre (Hitler) e a figura do inimigo (judeus), para Zizek devemos reconhecer também aquela do estado nacional, que passa a ser o objeto de identificação do povo, através do qual esse encontra seu gozo imaginário. Já na ordem simbólica, um conjunto de leis, constituindo uma forte estrutura burocrática, possibilitaria a construção de um a mais de gozo quando consegue manter em um segredo obscuro a violência contra os inimigos.

Destacamos esses dois pontos que fundamentam a interpretação de Zizek da Alemanha nazista: 1) pela ordem imaginária, a percepção de que o gozo do povo se constituía pela via da identificação à nação/estado; 2) pela ordem simbólica, o reconhecimento da função essencial da manutenção em estado obscuro, escondida sob o manto da absoluta ordem burocrática, a violência exercida contra o inimigo.

Podemos nós aqui em nosso país tropical bolsonarista reconhecer essas mesmas formas imaginária e simbólica do nazismo alemão? Nada me parece mais distante, pois: 1) embora cá e lá nosso governo alvoroce algum discurso nacionalista e meia dúzia de palhaços se vistam de verde e amarelo às vezes, percorrer o Brasil hoje não é de modo algum percorrer um território de sujeitos identificados a uma nação; pelo contrário: em que canto desse país escutamos pessoas preocupadas com um projeto de nação? Não vemos hoje qualquer projeto nacional que perpasse nem povo, nem nossas supostas elites; 2) o gozo pela violência não tem nada de obscuro ou secreto por aqui, nada de contido por trás de um regramento burocrático: ele é o gozo que mata escancaradamente nas ruas e não se desculpa – e o bolsonarismo é a expressão viva desse despudor perante a violência.

Portanto, se o discurso do governo bolsonarista não se realiza de fato como um discurso de purificação de sujeitos identificados a um ideal de nação e nem se perpetra por uma via simbólica complexa que funciona escondendo a violência contra o inimigo, esse governo está de fato tão distante do discurso que funcionava na Alemanha nazista como o está do discurso que teatralmente o secretário de cultura reencenou copiando os alemães – e, portanto, é acessório e irrelevante demiti-lo ou não.

Mas se não nazista, qual seria o discurso bolsonarista? E como entender a demissão do secretário no contexto desse outro discurso?

Se a ideologia nazista “manipulava o desejo popular autêntico de viver numa verdadeira comunidade em que impera uma forte solidariedade social, superando assim a feroz concorrência e exploração inerente do capitalismo”, já a ideologia bolsonarista parece trabalhar justamente pelo esgarçamento de todo tecido social, propondo um estado semelhante ao desregramento da horda, um coletivo da selva em que cada um, entregue a sua própria sorte, pegaria o que tivesse força bruta para pegar – e que se danem os outros! Aqui, o discurso é de que ninguém dará um vintém pela comunidade – e, mais ainda, de que toda violência inerente a esse estado social é bem vinda e que ninguém precisará esconder sob uma estrutura simbólica ou burocrática o sangue que escorre em suas mãos.

Por nossas bandas, os gozos ainda correm selvagens, liderados agora por um mestre exemplar para um discurso liberador de todos os nossos mais incivilizados impulsos. Basta acompanhar a figura discursiva de Bolsonaro para se certificar da barbárie que por ele se propaga: mal-educado, grosso e desrespeitoso de todas as normas de português, etiqueta, polidez, etc.

Se, então, nada no discurso que nos governa se assemelha à “experiência extasiada e estilizada da comunidade” nazista irmanada em uma nação e controlada por um desvelo burocrático extremo camuflando a violência, logo, o apelo teatral à nação e ao rito do ator Roberto Alvim trazem à cena um duplo estranhamento: pelo lado imaginário, ao apelar à imagem de um ideal de nação; pelo lado simbólico, ao atuar exagerando no uso de formalismos simbólicos.

Compreende-se nesse contexto que se demitimos Roberto Alvim certamente não foi por ele ter escancarado demais o discurso nazista do governo – mas sim, pelo contrário, porque a encenação teatral de um ideal estético nazista é de fato totalmente estranha à ordem imaginária e simbólica do discurso bolsonarismo, posto que o gozo do bolsonarista não depende de uma identificação a uma nação nem da camuflagem da violência: esse depende apenas da reconquista justamente de uma violência sem amarras imaginárias ou simbólicas sobre uma terra sem pátria e sem lei.

Aqui, pretendemos apenas o retorno ao gozo do estado de barbárie explícita – e Bolsonaro, mestre incontestável, por esse discurso nos guia como novo capataz da implantação da exploração bárbara da terra e do povo nas colônias. Equívoco grave, portanto, atribuir a Bolsonaro uma mestria nazista – e, por conseguinte, equívoco reconhecer na demissão do secretário nazista um recuo de governo.

Por fim, a terceira ordem, a do real lacaniano, que Zizek usa para pensar como o capital continuaria a se manter longe de ataques na Alemanha nazista, serve também para vermos como o discurso de nosso mestre nacional atende às exigências do capital em nossas terras: discurso do capataz que garante a devastação sobre essa terra de ninguém que habitamos, que nunca chegou a ser nação e que ainda hoje não teme expor em praça pública sua violência.

E se o único refúgio do povo continua a ser a sacristia, uma encenação do êxtase transcendental comunitário semelhante à do secretário da cultura encontraria sim ainda seu lugar dentro de uma igreja – mas se essa sacristia não é senão ainda aquela de nossa história colonial, aquela que o povo, mergulhado na violência de nossa sociedade, continua a buscar como único consolo, para depois votar no santinho de quem o consola, tal discurso nacionalista e simbolicamente rebuscado pode tranquilamente ser dispensado sem prejuízos, posto que não faz parte estrutural da fé popular em seu pastor.

Defenestrando o secretário, Bolsonaro mostra que o discurso que nos governa sabe usar da fé e aparelhar igrejas, mas sabe também que aí nenhum pastor fermenta qualquer tipo de idealização social ou elevação simbólica. E que ele pode então descartar sem traumas um teatro irrelevante para o seu projeto para atender aos verdadeiros atores desse mesmo projeto – seguro de que a velha fé que move as massas através das igrejas ignora qualquer ideal coletivo de nação ou qualquer preocupação em apaziguar a violência já tão naturalizada.

Mas se, ao demitir seu secretário, Bolsonaro atende ao pedido de alguns amigos, vemos revelar-se ainda mais uma especificidade de seu discurso: se no nazismo o ideal de nação e de raça puras era a linha guia do mestre, em nossas terras sem lei ou justiça vigora ainda como norma primordial o utilitarismo do favor feito aos poucos compadres.

A queda do secretário da cultura se coaduna perfeitamente com as especificidades desse outro discurso do mestre que hoje nos preside. Até quando vamos continuar brincando de pôr bigodinho de Hitler em Bolsonaro para não vermos a cara do mestre que moldamos com nosso próprio barro?

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