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Bolsonaro na Presidência representa uma patologia que não é a dele, mas sim a nossa

Brother Bolsonaro: nem louco, nem pai

.Por Alessandra Caneppele.

Encontramos na mídia muitas tentativas de diagnosticar Bolsonaro como um caso clínico. Ao mesmo tempo, o fenômeno social de sua eleição aparece constantemente interpretado como resultado da busca do eleitorado por uma figura paterna.

Funcionarios de Itaipu queimando aldeia indígena em 1981 (foto comissão da verdade do paraná – via the intercept brasil)

Nesse momento em que estamos todos suspensos aos últimos fatos de nossa crise política e social, sem saber ainda quais serão seus reais desdobramentos (desejando o melhor e temendo o pior), é importante avaliar o significado desses dois apelos interpretativos. Como tais linhas interpretativas aproximam o funcionamento do país à ordem das razões da esfera psicológica e familiar, a reflexão prossegue aqui na suposição de que os organismos social e familiar, embora não coincidentes, possuem inflexões semelhantes.

Diagnosticar Bolsonaro?

É enorme a bibliografia que nos conta sobre como os grupos sociais, particularmente as famílias, criam um bode expiatório que funciona como depositário de seus males coletivos. Uma organização cujos membros estão sob um estado de mal-estar qualquer costuma, em um primeiro momento, unir esforços para varrer para debaixo do tapete seus problemas, insistindo em olhar para outro lado e negar que a coisa não está indo muito bem.

Diante da persistência do mal-estar coletivo escamoteado, muitas vezes elege um membro, normalmente um dos filhos, que será levado então aos especialistas para ser diagnosticado e passará a carregar em si, sob o título de uma patologia, um mal-estar que pertence a todos os membros do grupo. Profissionais que lidam eticamente com a saúde mental das crianças (e não apenas prescrevem ritalina e similares) conhecem muito bem a ânsia familiar por um diagnóstico. Em que medida não repetimos socialmente agora esses mesmos mecanismos ao tentar diagnosticar Bolsonaro?

(foto antonio cruz – ag brasil)

Certamente em um primeiro momento tentamos jogar o mal-estar Bolsonaro para debaixo do tapete (a mídia insistia que era melhor nem dizer o nome do tal! *). Mas, negando a existência desse indício de mal-estar coletivo, como era de se esperar, não fizemos senão aumentá-lo exponencialmente, a ponto de hoje estarmos totalmente subjugados a ele. E agora que não mais podemos escondê-lo, como na saga familiar, procuramos explicá-lo por um diagnóstico capaz de pelo menos apaziguar um pouco nossas angústias?

Embora seja tentador atribuir ao sujeito individual Bolsonaro psicopatias e perversões (que, sim, podem existir, ou não, mas sobre as quais só podemos especular como espectadores distantes), certamente a única patologia que podemos aferir com certeza nesse caso é a de uma sociedade que escolhe uma pessoa totalmente inadequada para um cargo: a patologia visível e palpável de Bolsonaro não está nele, mas sim no cargo no qual nossa nação escolheu colocá-lo – certamente o problema não é o jabuti, mas sim quem o colocou no alto do poste!

Deixado em casa comendo pão com leite condensado, ele não seria um ser patológico, mas sim apenas um burro e um bruto – no máximo com um diagnóstico antiquado de oligofrenia. Mas, no lugar que escolhemos como nação dar a ele, ele surge como uma patologia. E ele mesmo demonstra saber que a junção entre ele e o seu cargo é um transtorno!

Chegamos, então, ao terceiro aspecto desse processo de patologização: ao final o mal-estar coletivo se perfaz como uma patologia real que passa a exercer um poder sobre todo o grupo – como vemos nas famílias que começam a viver o tempo todo para cuidar da patologia do membro escolhido como representante do mal-estar.

Assim Bolsonaro na presidência performa uma patologia – que não é a dele, mas sim a nossa – e que cobra de nós seu preço ao exercer o governo como desgoverno e exigir o tempo todo que cuidemos de sua infernal loucura presidencial! Como nas famílias, nos tornamos reféns do louco que criamos e que agora se sente livre para sapatear diabólico sobre nossas cabeças. Os esforços interpretativos que tentam atribuir uma patologia ao indivíduo Bolsonaro apenas reforçariam essa alienação de nossa própria verdade coletiva, nos aprisionando ainda mais em nosso próprio mal-estar e inação.

Para sair desse estado é preciso refletir sobre o tipo de loucura que escolhemos – e apenas nesse contexto as características próprias ao sujeito Bolsonaro podem nos interessar.

Passemos, então, à segunda linha interpretativa que atravessa as reflexões atuais sobre nossa crise social: Bolsonaro teria sido eleito por representar uma figura paterna?

Bolsonaro pai? Apenas uma horda de filhos matando paie lei

Em outro texto*, apoiados na imagem da “jovem democracia brasileira”, associamos o confronto entre o levante rebelde bolsonarista e a autointitulada “sociedade esclarecida” à realidade de uma família em crise com filhos adolescentes – e, então às vésperas das eleições, alertamos que, comportando-se como pais incapazes de escutar o significado da rebeldia de seus filhos, a “sociedade esclarecida” poderia tornar crônico o que deveria ser apenas um momento de transformação, impedindo nossa passagem do adolescente à vida adulta – e, pelo contrário, levando à regressão para um estado social infantil e tutelado.

Passadas as eleições e já sob o governo Bolsonaro, voltemos a essa imagem. A crise de adolescência é fundamentalmente uma crise de autoridade: momento crucial de passagem da obediência a uma ordem externa, à lei cujo representante é o pai, à obediência à lei introjetada pelo sujeito (ele não obedece a lei porque o pai externo manda, mas sim porque ele mesmo, já adulto, representa, internamente, a lei como sendo sua e a obedece).

Essa passagem implica um esvaziamento da figura externa e real do pai, que nesse processo expõe que não é dono de toda a lei – mas sim também ele um sujeito submetido a essa – para que o filho possa ele mesmo emergir também como, ao mesmo tempo, submisso e agente dessa lei. Quando a crise de adolescência se torna crônica, pais e filhos permanecem presos à dificuldade de transmitir essa ambiguidade da lei – que tanto é independente quanto é dependente de cada um de nós para que exista.

Enfim, é em torno da dificuldade em ascender a um mundo adulto que é tanto regulado pela lei quanto regulador da lei que a crise adolescente se estabelece como um ataque crônico e infantilizado a qualquer ordem e lei – e à própria figura dos pais como representantes dessa.

Mas o que é o governo Bolsonaro senão a presença crônica de um desmonte de toda e qualquer lei? E o desmonte das leis que regulam nosso trânsito não é paradigmático do ser adolescente que quer correr mundo afora livre de qualquer controle ou autoridade? E o mesmo vale para todos os outros desmontes: patrão que emprega sem leis; produtor rural que invade sem leis; policial e cidadão que matam sem lei. O adolescente em crise parece ter ganho a queda de braço com a “sociedade esclarecida” e hoje nos governa, demolindo uma por uma as leis – e, incapaz de encontrar seu lugar como sujeito e objeto das leis, é como criança irresponsável que ele nos leva em seu passeio.

Nossa família/sociedade, depois de séculos virando as costas para o mal-estar próprio a cada um de seus membros e o deixando crescer até não mais caber sob o tapete, perfaz sua patologia e a ela se submete, entregando as chaves do carro, da casa e do cofre para nossa adolescência social que, incapaz de ascender como sociedade auto-regulada pela lei, revolta-se inconsequentemente contra toda lei.

Ora, como é possível nesse contexto supor que Bolsonaro tenha sido eleito por representar uma figura paterna? Considerar que o fato de ele governar misturado aos filhos signifique que ele governe como pai não passa de um equivocado curto-circuito interpretativo, na medida em que não é propriamente através de uma autoridade paterna que ele se relaciona com seus filhos – pelo contrário: muito mais correto é reconhecer que entre os quatro Bolsonaros no poder temos uma associação entre brothers, na qual todos se protegem e se auxiliam formando um conluio que visa a burlar toda e qualquer limitação imposta por qualquer lei de qualquer natureza – como uma sociedade paralela fraterna (que, não por acaso, é o modelo particular a nossas milícias).

O governo dos Bolsonaros não pode de modo algum ser interpretado como uma monarquia, pois nessa encontramos uma ordenação rígida e hierárquica do poder baseada na ascendência paterna, a qual inexiste entre nossos quatro governantes. Pelo contrário, quem de fato manda aí? E, salvo o fato de Bolsonaro ser o pai biológico de seus filhos, qual indício temos de que ele possui um poder ascendente sobre seus descendentes?

Ele e seus filhos, juntos, não podem ser senão os filhos unidos para matar o poder paterno representado pelas leis que colocam limites à expressão dos nossos impulsos mais infantis e incivilizados. Persistir na aproximação entre Bolsonaro e a figura do pai é um grande erro que nos impede justamente de pensar o que é um pai: Bolsonaro é tudo aquilo que não pode ser um pai; ele é o anti-pai – ele e sua horda de irmãos são os assassinos do pai e da lei.

Sua faceta puritana e autoritária não é senão simulacro da rebeldia do adolescente contrariado pelo pai – e impõe (para que ele não se desmanche completamente junto com sua demolição da figura paterna e da lei) a manutenção na linha do horizonte da ilusão de um poder total e absoluto, que ele encontra na figura dos militares (pais que ele tanto buscou quanto renegou em sua passagem desastrosa pelo exército e com os quais mantém uma ambígua e problemática identificação).

Bolsonaro representa muito bem as mazelas que enfrentamos como nação na construção de nossa relação com a lei e a autoridade, pois ele representa o desejo do país de se perpetuar como terra que não responde autonomamente por sua própria lei – e, justamente por isso, precisa flertar com o autoritarismo. E, pelas artimanhas do funcionamento de nossa subjetividade humana, olhamos para um anti-pai e ironicamente o reconhecemos em seu avesso: como um pai absoluto!

Bolsonaro não é nem o louco, nem o pai: ele é o filho dileto das mazelas de uma sociedade que ainda não aprendeu que as leis devem valer para todos – ricos e pobres; pais e filhos. Ele conta sobre pais e filhos que gostariam de permanecer fora do alcance da lei. Ele encarna a patologia de uma sociedade que desconhece a função do pai como aquele que transmite a lei que igualmente governa e submete a todos, inclusive o próprio pai. E justamente por sermos uma sociedade que desconhece ainda o que é um pai, Bolsonaro equivocadamente é interpretado como uma figura paterna.

Para evitar a patologia dessa filiação rebelde de nossa nação, faltou-nos uma noção de paternidade que abarcasse aquela de transmissão universal da lei – a qual só poderá ser construída quando aceitarmos que até hoje fomos apenas procriadores em uma sociedade na qual nos servimos da lei para criar somente filhos das desigualdades e exceções.

Essa construção, portanto, deve ser paga com a nossa própria carne. Estamos dispostos a pagar esse preço, incontornável para um pacto social que por fim legisle com justeza e igualdade em nome de todos os membros de nossa sociedade? Não é por acaso que o cerne de nossa crise, como mostram as últimas denúncias da vaza jato, jaz no modo como manipulamos a lei diferentemente para uns e para outros.

Freud em Totem e Tabu supõe um processo civilizatório no qual em um certo momento os filhos (mesmo os que também são pais biológicos, mas não detêm poder) se unem para matar o pai da horda, o qual governava impondo sua própria lei tirânica e desigual, para que depois um novo pai e governante, amparado em lei equânime, surgisse.

Quiçá consigamos um dia olhar para esse momento de horror capitaneado pelos quatro irmãos Bolsonaro como uma peça semelhante de nosso caminho histórico de construção de uma civilização brasileira na qual as leis serão finalmente justas para todos – e na qual poderemos por fim reconhecer pais que de fato mereçam esse nome. Por enquanto não podemos reconhecer naqueles que escolhemos para serem nossos governantes senão uma horda de irmãos confraternizando sobre os escombros de nosso repasto totêmico.*

*https://cartacampinas.com.br/2016/07/bolsonaro-a-bruxa-e-o-terror/

*https://cartacampinas.com.br/2018/09/zbolsonaro-e-a-nossa-adolescencia-democratica/

* como testemunham os dois textos que menciono acima, infelizmente minhas passadas esperanças de reversão do agravamento de nossa crise se mostraram até agora vãs: nosso poço parece sempre capaz de mais e mais se aprofundar – mas na esperança de que tenhamos chegado finalmente ao fundo que inevitavelmente nos impulsionará para cima, renovo aqui mais uma vez minha esperança de redenção!

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