.Por Eli Fernandes.
Se todo o complexo que envolve o Sistema Único de Saúde, o SUS, fosse um filme ou uma peça de teatro, quem deveria ser o ator ou atriz principal? Obviamente que os usuários do sistema. Não os fornecedores de insumos da Saúde Pública, nem mesmo, com todo o respeito, os trabalhadores da área, esses, sim, agentes muito importantes. Pois, se não houvesse o usuário, muito provavelmente eles não teriam a quem atender no que diz respeito ao tratamento da doença, mas ainda assim teriam muito que fazer no que diz respeito à prevenção e profilaxia.
E se não houvesse o profissional da Saúde, quem o usuário procuraria no momento do sofrimento ou na necessidade de evitar um agravo? Só que aqui trata-se de falar sobre os agentes principais, não dos coadjuvantes, e muito menos dos figurantes, dublês e participantes eventuais, mas dos usuários, nós, loucas e loucos.
Mas e se, em vez disso, pensarmos, não num filme ou peça de teatro, mas num circo? Seríamos nós, usuários do SUS, os palhaços? Talvez. Profissão digna a de palhaço. Tirar gargalhadas das pessoas não é tarefa fácil. Mas pensando em palhaço no sentido pejorativo da palavra, como aquele que é motivo de risos de deboche dos outros, aí não seria bom. Mas é assim que a gente se sente. Palhaço. No pior sentido da expressão. Ou malabarista. Fazendo malabarismos pra conseguir sobreviver às peripécias que nossos governos, lobistas e empresas capitalistas famintas exigem da gente.
E por falar em circo, posso até citar a corda bamba pela qual temos de andar, nos equilibrando entre as nossas necessidades e aos interesses da sociedade capitalista que sopra fortes ventos pra nos derrubar naquela velha imagem da fila do SUS que ficou famosa na mídia. E privatizar tudo? Trancar o doente mental em comunidades terapêuticas que são neomanicômios, submetê-los a doses letais das mais estranhas substâncias psicoativas legalizadas e, em grande parte das vezes, doutrinas religiosas impostas como condição para receber indulgências. É o cenário que se desenha.
O recorte aqui, no caso, é sobre Saúde Mental. Só que existe mesmo uma separação entre a mente e o resto do corpo físico? Não há. É tudo junto. Corpo e mente. Mas quando falamos sobre Saúde Mental enquanto especialidade, estamos falando também em processos bioquímicos que desencadeiam ações, reações, respostas, atitudes, comportamentos, determinados pelos neurotransmissores, células que ligam um neurônio ao outro e que nos fazem rir, chorar, ter vergonha, comemorar, enfim, viver.
Por isso volto a me contrapor à ideia de Saúde Mental e Saúde Física como coisas distintas. Se eu der uma topada com o pé num tijolo terei uma reação de dor que pode desencadear de tudo: Choro, palavrões, reflexão sobre mais cuidados, entre muitas outras coisas. Ou quando ficamos loucos de raiva, loucos de alegria, loucos de dor de cabeça, por alguma coisa que nos acometeu.
A gente comete loucuras também. Fica louco de amor, de paixão, louco de vontade de comer, louco de vontade de ficar louco. Que é a loucura então? Algo inerente ao ser humano? Creio que sim. Creio. Não sou cientista pra dizer isso sem que seja na base da crença, dada a minha vivência e convivência com a sociedade.
As Pessoas que Vivem com a Loucura _para as quais podemos usar a sigla PVL_ estão por aí, no meio das que julgam-se sanas, normais, ou que apenas admitem conviver com a loucura. Então as políticas de tolerância zero, nas quais você não pode ficar triste, não pode ficar alegre, tudo é considerado doença. Qualquer tristeza é depressão, qualquer alegria pode ser considerada descompensação? Não é bem assim. Existe sim descontrole. Mas qual é o limite do controle? Existe, sim, depressão, que não é frescura. Mais importante ainda: Uma pessoa deprimida não pode ser resumida à condição de deprimida. “Ah, essa aí é deprimida mesmo, nem dê bola”. Errado. Ela é, antes de tudo, uma pessoa. Sendo assim, a Pessoa que Vive com Loucura, PVL, não pode ser resumida à condição de louca. Ela é, como no caso citado anteriormente, uma pessoa. Como todos os seres humanos são: Pessoas.
Sim. Somos loucos mesmo. Mas somos pessoas inteiras. E somos protagonistas do Sistema Único de Saúde, junto com nossos familiares, amigos, parceiros e, é importante destacar, os profissionais da área da Saúde e todos os outros envolvidos na Luta Antimanicomial.
O que reforço aqui, para encerrar o texto, é que, na minha opinião, atualmente, este papel, de lutar contra a volta dos manicômios _para que os Centros de Atenção Psicossocial, os Caps não se transformem em manicômios-day ou minimanicômios, para que as Comunidades Terapêuticas não se reproduzam iguais a coelhos sob o eufemismo do título “Comunidades Terapêuticas”, para não serem enxergadas como manicômios disfarçados, para que não voltemos à era do eletrochoque_ tem ficado quase que só nas mãos dos profissionais da Saúde. Muito obrigado profissinais da Saúde. Mas chegou a hora de nós, loucas e loucos, assumirmos o papel de protagonismo das Pessoas que Vivem com Loucura e que são usuárias dos serviços de saúde ou não. Loucas e loucos, uni-vos!
Eli Fernandes é Jornalista e usuário do SUS. Colaboraram: Alexandre Castro (Administrador de Empresas, Redutor de Danos do Caps AD Independência, Campinas, São Paulo), Aline Mendes dos Santos (Auxiliar de Serviços Gerais, Usuária do SUS, Ana Paula Ruas (Psicóloga, Coordenadora do Caps AD Independência), Frederick Romano (Profissional de Educação Física e Técnico do Caps AD Independência), Rosana Santos (Terapeuta Ocupacional, Técnica do Caps AD Independência), Victor Bessa (Sociólogo, Redutor de Danos do Caps AD Independência)