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O fazendeiro e a culpa


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.Por Luís Fernando Praga.

A culpa é uma tremenda invenção! Ela deve ter origem tão longínqua quanto as ideias de pecado e justiça.

Já o sentimento de culpa, o remorso, que nasceu antes da invenção da palavra culpa, era um sentimento nobre e útil, que alertava ao responsável por determinada ação prejudicial, para que esse buscasse reparar o dano e evitasse repetir tal ato, de forma recorrente.

Mas o ser humano é um bicho ignorante e egoísta do jeito mais ignorante possível.

Certo dia, o responsável direto pelo estupro e morte de uma criança percebeu que reparar os danos e carregar o rótulo de culpado seria desgastante e enfadonho demais; então, decidiu jogar sua culpa nas costas de outro.

O outro indignou-se e alegou inocência, mas era a palavra de um andarilho indigente contra a de um próspero fazendeiro, homem de família, cidadão respeitável, trabalhador e assíduo fiel da paróquia local.

O indigente foi quem carregou a culpa; e uma punição exemplar lhe foi imposta para que ele jamais cometesse novamente o terrível delito que jamais havia cometido. O andarilho foi encarcerado e castigado até o fim de seus dias.

Se a culpa ficou com o andarilho, o sentimento de culpa, por outro lado, ficou com o fazendeiro, o verdadeiro responsável pelo terrível acontecimento.

Mas, como todos acreditaram que o culpado tivesse sido o andarilho e o devido castigo já houvesse sido imposto, os prejuízos gerados pelo ato não recaíam diretamente sobre e o verdadeiro responsável e esse ainda nutrisse um desejo insano e egoísta por repetir aquele ato, o fazendeiro deu ordem para que seus sentidos matassem aquele desagradável sentimento de culpa.

Ironicamente, aquele andarilho não seria capaz de ser cruel com ninguém, porque, até perder a liberdade, ele amava a própria vida, e isso já era motivo bastante para respeitar a vida dos outros.

Já o fazendeiro não estava disposto a conviver com sua própria perversidade, com a lembrança de sua covardia, com a certeza de que havia destruído definitivamente uma vida ainda na infância e de que ele não gostaria que alguém tivesse feito a ele o que ele fizera com aquela criança. O fazendeiro desejava ficar alheio à própria selvageria e à repugnância de seu ato.

Pensando hoje, talvez os pais daquele fazendeiro não o tenham ensinado a respeitar a vida de outros. Naquela época ensinavam muito que Jesus voltaria, que o diabo é muito mau, que Deus é mais poderoso que tudo e desaprova uma série de pessoas e condutas.

Enfim, tudo foi feito para que o sentimento de culpa no peito do fazendeiro fosse erradicado e o homem pudesse voltar a dormir e estuprar crianças tranquilamente.

Então outras crianças foram estupradas e outros indigentes foram condenados a pagar pelos crimes do fazendeiro.

Com o passar do tempo, com tantos estupros ocorrendo na região e com tantos indigentes alegando inocência, a comunidade começou a desconfiar um pouco daquele próspero fazendeiro.

Um viajante chegou a jurar que o fazendeiro o havia amarrado e espancado enquanto estuprava e matava seus dois filhos. Havia as marcas nos punhos e os hematomas pelo corpo.

A cada vez que alguém o acusava, o fazendeiro sentia que aquele frágil sentimentozinho de culpa que ele escondia no peito ia ganhando forças e voltava a incomodar seu sono, e isso não podia ficar assim!

Foi aí que o fazendeiro selecionou, rigorosamente, alguns amigos de infância, ligados pela origem, opulência, costumes, religião e vínculos familiares (um verdadeiro conselho de notáveis para aquela comunidade) e criou o sistema judiciário local, encarregado de remanejar as culpas, castigar inocentes, ignorar as responsabilidades e a reparação dos danos e aliviar o peso do sentimento de culpa nos verdadeiros responsáveis.

A tudo isso se deu o nome de “fazer justiça”, e aquela comunidade cresceu  e o fazendeiro prosperou ainda mais, “fazendo justiça”.

Com esse tipo de “justiça”, o sentimento de culpa no peito daquele camponês foi encolhendo, mirrando, ficou imperceptível, até que perdeu sua razão de ser e o fazendeiro deixou de se sentir culpado por ações negativas cuja responsabilidade era exclusivamente dele.

Entretanto, muito antes que o fazendeiro tivesse a ideia genial de criar um sistema judiciário, contemporâneo do sentimento de culpa, nasceu o senso de justiça.

Assim como o remorso, o senso de justiça pode ser pessoal e socialmente, anestesiado, combatido, golpeado, enterrado, mas não morre! Não é uma invenção humana, como o dinheiro e a culpa, mas um sentimento humano, uma força natural, que se acumula e registra a História toda!

Hoje, nesta sociedade composta, como sempre, apenas por pessoas imperfeitas, nós, aprisionados de nascença ao sistema capitalista, com nossos sentimentos de culpa e nossos sensos de justiça e liberdade devidamente reprimidos e deprimidos, podemos até fingir que não, mas a “prosperidade” é o que importa!

No mundo competitivo, ostentar seu nobre e regenerador sentimento de culpa é a maior das demonstrações de fraqueza e inaptidão.

Precisamos competir, e os “culpados” partem do pelotão lá de trás!

Pouco importa que nos tenhamos tornado hipócritas, mesquinhos, desumanos, injustos e antinaturais: assim é o mundo competitivo!

Quanto à correção das mazelas sociais geradas por nossas ações nefastas, já criamos uma legião de gente previamente odiada, sem voz e sem crédito, gente que não faz falta nenhuma para o fazendeiro. Gente que carregue as culpas por nós, gente a quem possamos transferir a responsabilidade por toda aquela nossa angústia de viver. Gente a quem possamos castigar sem revide. Gente que tem vida e, às vezes, até ama viver…

Mas, precisamos competir, e não “vagabundear”, para galgarmos a prosperidade, para que “nos mantenhamos na elite”, naquela elite que gosta de ver pobre competindo, a elite amiga do dinheiro, do sistema judiciário, amiga do fazendeiro e inimiga do senso de justiça!

Precisamos competir demais, para que sempre haja alguém abaixo de nós, com menos recursos e menos credibilidade, para que carreguem nossas culpas.

Pouco importa que nos tenhamos tornado uma sociedade indiferente ao sofrimento, cega à nossa covardia e insensível ao clamor do remorso.

O fazendeiro superou as adversidades e prosperou! O fazendeiro é nosso exemplo! O fazendeiro quer fazer justiça! O fazendeiro é nosso amigo! O culpado não pode ser o fazendeiro, inocente depois de tantos séculos! Vamos apontar os malditos culpados, como faz o fazendeiro!

SOMOS TODOS O FAZENDEIRO!!!

…O senso de justiça, que ainda respira, teima em questionar: Somos mesmo?

E o sentimento de culpa, imobilizado e aos prantos, responde: Não, não somos! Mas temos sido tão cruéis, covardes, ignorantes e irresponsáveis quanto ele…

Luís Fernando Praga mantém a Coluna Flexível com crônicas em prosa e verso, além de atuar como médico veterinário.

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