.Por Bruno Lima Rocha.
Ideologia importa, e muito. E sentimento religioso não é alienação, e menos ainda o idealismo ou a dimensão utópica da luta são “ruins”. Tampouco “dilemas de falsa consciência”. Muito pelo contrário. É na resultante entre câmbio ideológico, alteração nas relações sociais e instituições coletivamente controladas que residem chances reais de mudanças de profundas. A complexidade do tema e a observação do que ocorre em nosso país implica em desconstruir alguns mitos das “modernizações”.
Existe um sistema de crenças paracientífico, eu diria que afirma alguns equívocos. Um destes é a noção de que “as condições de existência determinam as condições de consciência”. Logo, dentro dos preceitos quadrados ainda de linha soviética (obs. Lembrando que a União “Soviética” era tudo menos governada pelo poder dos conselhos de trabalhadores e soldados), existiria esta fantasia sociológica da “classe em si” e a “classe para si”, com vanguardas auto-eleitas dentro da “razão universal”. Interpreto esta visão tacanha de teoria da história algo que rivaliza com o sentimento religioso, mas através de um instrumental “científico”. Nem toda visão modernizante é tributária do modelo stalinista, mas houve similitude em escala global.
No período da Guerra Fria, para além do bloco do Leste Europeu – taxada como “cortina de ferro” à época – as teorias da modernização governaram corações e mentes dentro da Era da economia planificada e dos trinta anos gloriosos do capitalismo. Como as mentalidades dos tomadores de decisão operam a partir de determinações, logo, seria determinante a mobilidade social dentro de sociedades urbanas, com acesso ao estudo, crédito de consumo, moradia, transporte integrado e outras características da modernidade. Parece que tal estrutura de mentalidades operou durante a chamada Era Lula, onde houve uma massiva promoção social da base de nossa sociedade, mas sem mudança estruturante na significação derivada desta mesma mobilidade. Traduzindo: a maioria não processou a informação como sendo fruto de um “governo progressista através de um pacto de classes”.
Logo, a quase reserva eleitoral não rendeu o que deveria? Por quê? Uma das causas evidentes foi à negação do populismo, ou seja, negar-se a organizar uma parcela – de 5 a 10% por exemplo – dos beneficiados das políticas públicas como garantia de permanência no Poder Executivo através do voto indireto, fazendo assim o bloqueio de fato do sistema político. Rasgaram o manual e por duas vezes; não podia dar em outra coisa. Enquanto isso, no andar debaixo, onde a sociedade pós-colonial realmente existe, vampirizavam os feitos do lulismo.
Posso e devo ser questionado. Porque isso de novo? Ora, mesmo em um momento de necessária unidade, é necessário um debate franco, sem sectarismo, mas sem escamotear nada. Não houve um pingo de autocrítica, por consequência, não há reflexão densa e assim tudo pode se repetir. Especificamente na parte que me toca neste latifúndio teórico-político, fico sem compreender a direita mais rançosa. Fizeram e fazem uma gritaria de “revolução cultural” de base gramsciana. Tem gente ainda mais enlouquecida afirmando “mais Mises e menos Paulo Freire”. Apostasias neoliberais à parte, o que menos tivemos na Era Lulista foi Gramsci e Freire, assim como tudo o que o lulismo não fez foi o “populismo latino-americano”. Se tivesse feito, não teria caído, ou ao menos, não tão facilmente.
A materialidade concreta e o cotidiano incidem sobre nossa percepção do mundo da vida, mas isso por si não altera mentalidades e menos ainda transforma consciências. Para dar significado às políticas públicas, o governo deposto deveria querer fazer justo o que nunca quis: organizar a base da pirâmide social e traduzir as “melhoras” como conquistas coletivas, acima das capacidades individuais. Não que os indivíduos, as mulheres e homens do Brasil, não sejam meritórios de suas vidas melhorarem, mas a ignorância política, somada à manipulação grosseira da fé alheia (blasfemando as palavras e obras do Cristo todo o tempo) e o culto ao individualismo estadunidense, fez da conquista material uma derrota ideológica. A consequência é o desencanto quando o modelo rui pela também derrota ideológica de Dilma no segundo mandato, governando com Joaquim Levy e cumprindo os desígnios dos especuladores e financistas.
Romper o cerco das bolhas de internet e o desencanto somado à sobrevivência durante o terceiro ano de recessão consecutivo não é tarefa fácil, mas pode servir como lição histórica. A traumática experiência dos assassinatos de Marielle Franco e Ânderson Gomes no Rio de Janeiro demonstrou que é possível somar a indignação coletiva, com a prática de um ecumenismo de libertação e exigindo do aparelho de Estado respostas para ausência de direitos. Mas a indignação precisa ser canalizada para algo permanente, tanto no esforço da unidade possível através das lutas sociais, como no diálogo entre os sistemas de crenças, isolando os manipuladores e atraindo para uma agenda construtiva e cidadã os manipulados.
A luta social brasileira é diária, e esta opera de forma independente do calendário eleitoral. Mais importante do que eleger uma candidatura, é ter condições de força para reverter leis e medidas absurdas tomadas pelo governo ilegítimo. E isso já no primeiro semestre de 2019. Ao lado da organização de base – imprescindível e prioritária – esta força social precisa ser transmitida como potência ideológica, afirmando a vida e a sociedade por cima da vilania criminosa dos que querem os recursos do Estado apenas para a camada dominante da população. A luta também é – e sempre foi – por corações e mentes.
Bruno Lima Rocha é cientista político, professor de relações internacionais e de jornalismo
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