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O assassinato de Marielle Franco e a opressão estruturante no Rio de Janeiro

Bruno Lima Rocha

Na noite de 14 de março de 2018, uma 4ª feira no final do verão carioca, o centro da capital fluminense foi palco de um assassinato político. Possivelmente um crime por encomenda, os assassinatos da vereadora pelo PSOL-RJ, Marielle Franco e o motorista substituto de seu gabinete, Anderson Gomes, logo ganharam difusão internacional (ver BBC).

Marielle era o exemplo do engajamento político na cidade partida. Ex-aluna de prévestibular popular, formou-se em sociologia pela PUC do Rio e com mestrado Administração (ênfase em Administração Pública), estudando justamente a espacialização penal da pobreza favelizada no Rio de Janeiro.

Negra (afrodescendente) foi mãe adolescente e se torna homoafetiva na idade adulta. Trabalhou no gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e veio a se candidatar para vereadora nas eleições municipais de 2016. Quinta mais votada da cidade, ultrapassou os 46 mil votos e ultrapassou as barreiras geográficas e culturais do município.

No mandato, acompanhava a muito criticada intervenção federal, conhecedora que era da péssima experiência no Complexo da Maré, de onde provinha. Nos últimos meses antes de seu assassinato, conhecia e denunciava de perto os abusos e a violência estatal através do 41º BPM, aterrorizando a comunidade de Acari.

Enfim, tinha todos os “atributos” para se tornar tanto um alvo da repressão – das milícias, da chamada ‘banda podre’ da PM – como um símbolo deste momento do país. No texto que segue este analista, mesmo que discordando de algumas crenças e práticas de sua legenda, reconhece todo o mérito tanto de Marielle como de seus companheiros de jornada. Sigamos.

Rio de Janeiro, a capital nacional da hipocrisia

Marielle foi morta ultrapassando as estatísticas. Condenava o modelo violento de apartheid étnico-social. Falava aquilo que todos sabem e ninguém diz. No Rio de Janeiro todo mundo sabe de tudo, de tudo. Não há o que revelar; a cidade e a região metropolitana conhecem o papel das milícias, a disputa pelas facções no varejo, o arranjo – fracassado – das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a evidente maior tolerância com uma facção (TCP, Terceiro Comando Puro, herdeiro do TC dos anos ’80) e menor “convivência” com o CVRL (herdeiro do Comando Vermelho, antes Falange Vermelha, originário das galerias da Ilha Grande).

Todo mundo conhece os termos Arrego e Esculacho, e a “vela”, consagrada no uso pelo Cabo Flávio na porta do Shopping Center Rio Sul em 1995 (VER), “porque ali era proibido roubar”. Depois de mais de 30 anos, virou uma cultura; o cotidiano de violência desmedida desde o início do governo Moreira Franco (ele mesmo, em março de 1987, VER). Se quisermos seguir nesta linha do tempo, desde a Operação Mosaico 1 (VER). Não falta investigação “jornalística”, falta é meter a mão mesmo. E modificar o modelo policial, em todos os níveis.

Ou seja, estamos falando de um problema estrutural e não de troca de comandos de batalhões. Estamos afirmando que há risco de vida mesmo se a pessoa for detentora de mandato popular ou estiver sob a toga do aparelho judiciário. Não faz nenhum sentido. Porque Marielle não estava com escolta armada e andando em carro blindado? A vereadora atuava no Rio de Janeiro e denunciava a violência policial e das milícias. O Brasil não é a Escandinávia e o Rio tampouco é Estocolmo ou Oslo.

Se vale a comparação, do outro lado da Baía de Guanabara, na Região Oceânica de Niterói, as mesmas estruturas denunciadas por Marielle cobraram a vida da juíza Patrícia Acioli (VER). Era agosto de 2011, o país vivia o boom do crescimento econômico e havia uma aliança esdrúxula (estadual e nacional) bancando o esquema Cabral no Rio. Desde então o modelo ruiu e o Rio foi à falência, de novo.

É preciso respeitar o pertencimento e os vínculos de Marielle

Talvez seja emblemático reconhecer que no Rio de Janeiro, a força política que polariza eleitoralmente à esquerda é o PSOL. A cidade, “vanguarda cultural”, convive com um prefeito neopentecostal e milícias operando como Estado paralelo. Neste território a legenda de Marielle cresceu e como tal deve ser respeitada. Nestes tempos de internet “política”, ataques não faltam. Solidariedade – a esquerda como um todo e o PSOL em particular estão sofrendo um ataque covarde onde uma leva de “fascistoides digitais” afirmando que “agora o PSOL sofre do próprio remédio ao defender bandido e os direitos humanos”. Cada demência dessas é um ataque direto às mais de 6300 mortes violentas no estado do Rio em 2017 e os mais de 61.000 assassinatos do Brasil no mesmo ano.

A militante era do PSOL e cabe a esta legenda reivindicar sua companheira, assim como toda a esquerda brasileira deve ser solidária, respeitando seu pertencimento e militância. Marielle era do PSOL e não de outra sigla. Era uma militante de esquerda e como tal deve ser reivindicada. Era negra e da Maré e os mandantes de sua morte por encomenda sabiam exatamente a quem atingir. Só queria ressaltar a desconfiança para as lágrimas de crocodilo da Globo assim como dos poderes de fato da república; pior ainda é quem defende a intervenção federal no RJ como forma de solucionar “a violência no Rio”. Besteira.

O problema todo mundo sabe: estrutura policial corrupta, facções que mandam no sistema prisional, falta de serviços sociais nas comunidades, racismo institucional na capital e metrópole fluminense, além das milícias como um grande negócio de domínio territorial.

Marielle conhecia esta realidade, tanto como alguém que estudava os espaços como atuava neles. O Rio é a cidade das milícias (VER) e pelo visto pouco ou nada serviu a CPI (VER) que abordou este tema e foi narrada no filme Tropa de Elite 2.

Ao invés de recuarem, avançaram na forma de franquia do crime. Agora disputam espaços com as facções (ADA, TCP, CVRL) do varejo do tráfico e crimes conexos como roubo de cargas. A franquia das milícias estaria em 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana, espacialmente controlando área equivalente a quase um quarto da capital fluminense, com mais de dois milhões de pessoas sob seu domínio de terror! Atuam em 11municípios, tomando como ponto de partida a Zona Oeste do Rio, atingindo a bairros inteiros, contabilizando 608 mil domicílios.

Obviamente a “guerra do tráfico” não é contra estas “milícias”. Não faltam denúncias embora sejam poucos os denunciantes, e menos ainda àquelas a denunciar a partir dos espaços mais penalizados. Logo, trata-se de um bando de hipócritas! O que mudou na PM do Rio e no sistema de segurança desde a CPI das Milícias em 2008? Nada, simplesmente o quadro se agravou. Em novembro de 2010, o cerco na Vila Cruzeiro e depois no Complexo do Alemão foram vistos como “a guerra no Rio” (VER), com emprego de tropas federais e o apoio integral das emissoras de televisão. Passados oito anos, tudo só piorou. Por quê?

Pelo que foi divulgado em diversas reportagens e links, a vereadora Marielle Franco exercia um real esforço de representar comunidades carentes sob o terror de Estado. A juventude, alvo da violência policial, constantemente recorria ao seu gabinete e mandato, para denunciar as situações cotidianas que uma metade da cidade finge não saber que a outra passa. Insisto que este é um momento grave.

Mesmo quem discorde de algumas interpretações desta legenda (como é meu caso), incluindo o tema da segurança pública e a “crença nas instituições”, ressalto que sua atuação é importante e corajosa. A coragem sempre cobra um preço alto, como é o caso de gerações em Acari (VER). É a mesma comunidade das Mães de Acari. Não custa lembrar a “CHACINA DE ACARI”, 26 de julho de 1990 (VER) – após 25 anos do crime, o mesmo prescreveu (VER), e nenhum corpo foi encontrado.

A mãe que começou o movimento foi assassinada em 1993, o ex-deputado estadual Emir Larangeira teria ordenado a execução, segundo se divulgou. Ninguém preso, todas as suspeitas sobre os Cavalos Corredores. A vereadora Marielle Franco também atuava em Acari e denunciava regularmente os supostos abusos cometidos por policiais militares lotados no 41º BPM, conhecido na região como Batalhão da Morte. Ou seja, mais do mesmo no Rio.

Na tentativa de interpretar a trajetória intelectual e política de Marielle, li trechos de sua dissertação de mestrado (VER) com o título “UPP – A REDUÇÃO DA FAVELA A TRÊS LETRAS: UMA ANÁLISE DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO” defendida na UFF em 2014. O último parágrafo da conclusão é realmente emblemático.

“A política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro mantém as características de Estado Penal segundo Loic Wacquant. Os elementos centrais dessa constatação estão nas bases da ação militarizada da polícia, na repressão dos moradores, na inexistência da constituição de direitos e nas remoções para territórios periféricos da cidade (o que acontece em vários casos). Ou seja, a continuidade de uma lógica racista de ocupação dos presídios por negros e pobres, adicionada do elemento de descartar uma parte da população ao direito da cidade, continua marcando a segurança pública com o advento das UPPs. Elementos esses que são centrais para a relação entre Estado Penal e a polícia de segurança em curso no Rio de Janeiro.”

Enfim, a militante assassinada dominava o tema em todos os âmbitos e corajosamente aplicava seu conhecimento e capital político nesta tentativa de representação, e também por isso seu assassinato e o imediato reconhecimento provocaram tanta ira e canalhice na direita.

A internet brasileira abre os portões do inferno

Ao ler os comentários decorrentes de vídeos e postagens homenageando e reconhecendo o martírio de Marielle Franco, chego a duas conclusões. Ou estamos às vésperas do fascismo, ou tem robô demais e ciberativistas sobrando a favor do pior do país. Ou a Casa Grande entronizou no ativismo de internet ou realmente tem muita gente trabalhando – sendo remunerada pelo Brasil Paralelo e as redes pró-Bolsonaro – e a partir daí manipulando uma “audiência” que vai ao encontro tanto do conservadorismo mais arraigado (do tipo a favor do extermínio de massas e do neopentecostalismo) e de algumas bases sociais concretas.

O inferno chegou à consciência do brasileiro e da brasileira média, reproduzindo o pior das práticas políticas, indo ao encontro das desilusões com a ruptura da aliança de classes do governo deposto. A coisa está feia mesma, mas não tão feia como supostamente “espelhada” nas redes sociais do Brasil.

Nas horas que se seguiram à difusão do crime contra Marielle e Anderson vimos de tudo, desde teorias absurdas, passando por desembargadora do estado do Rio caluniando-a como “representante de facção”, assim como uma responsabilização da vítima. A última manobra, por sinal, é típica do opressor, pois naturaliza a condição de domínio ao ponto de não conceber outra forma de vida que não a reprodução subordinada.

Nas 48 horas seguintes, cheguei ao seguinte constructo: “a direita vomita ao digitar”. Isto ocorre quando a estupidez serve de combustível para o ódio insano ser manipulado pelo proselitismo político da extrema direita. Eu mesmo tive em meu perfil no Facebook gente não convidada, que entrou xingando-a de “amiga de maconheiros e defensora do CV”. Excluí na hora, mas depois reparei que este tipo de comunicação está endêmico nas redes sociais. O assassinato de reputações não parou por aí. Outro perfil – também supostamente feminino – entrou me ofendendo dizendo que Acari é do TCP e por isso a Marielle – suposta amiga de facção rival – foi assassinada. Pronto, já inventaram o “suspeito” ideal. Que horror.

As manobras da mídia são mais sofisticadas, mas igualmente absurdas

Na sexta à tarde (13 de março de 2018) O porta-voz oficioso do governo ilegítimo, o âncora e blogueiro Reinaldo Azevedo, condenou o PSOL e as esquerdas por estarem – estarmos – tentando “politizar” os assassinatos de Marielle e Anderson, reforçando a crença de que não deveria estar ocorrendo a intervenção federal no Rio (VER). Azevedo, assim como o comentarista de política da Globonews, Valdo Cruz, disseram nesta tarde que “apenas a intervenção federal pode conter a ‘violência’ no Rio”. Azevedo foi além, em seu editorial radiofônico, dizendo que o PROJACSTÂO, capitaneado por Caetano Veloso, está à frente da “politização” do óbito. Ou seja, estão acusando militantes políticos – não me refiro aos artistas, globais ou não – de politizarem um assassinato que é resultado de atuação e de escolhas POLÍTICAS. Não há desculpa para isso a não ser a tentativa de “acalmar os ânimos”, despolitizando algo que é estruturalmente político.

O editorial do jornal O Globo de 17 de março de 2018 passa a fronteira do ridículo, afirmando “Sectarizar morte de Marielle é um desserviço” (VER). Pelo visto o Jardim Botânico e o Cosme Velho seguem na mesma toada de tentar fazer a panela subir a pressão e aliviar a rua, quando julgarem ser conveniente. Algo me diz que dessa vez não vai dar certo. O assassinato de uma militante é um crime político!

Tanto é político o ato de fiscalizar e denunciar a segurança pública voltada ao extermínio e banalização da violência, como é hipocrisia política alegar querer mexer na segurança fluminense sem alterar sua estrutura. Falácia perigosa, sinal da tensão que alerta o Jaburu e as mídias ao seu redor.

Sobre segurança pública e direitos humanos

Outra baboseira mil vezes repetida é a afirmação de que a esquerda é apenas a “inimiga das polícias”. Trata-se de uma falsa polêmica, de um absurdo completo quando a imbecilidade à direita taxa os “defensores de direitos humanos” como protetores de “bandidos”. É justo o oposto. Mesmo dentre aqueles e àquelas que defendem os Direitos Humanos, há uma defesa intransigente do direito à vida. Também há uma defesa intransigente dos direitos do preso, porque do contrário, quem está no sistema prisional vira refém das facções e não terá chance alguma de reabilitação. Na esquerda da esquerda, quando há uma justa e profunda desconfiança para com o aparelho repressivo, também há uma noção realista de que o pouco patrimônio dos debaixo, assim como a vida de trabalhadoras e trabalhadores, deve ser defendido.

Não há conivência com “bandidos” e sim denúncia de quando as forças policiais se comportam como tais. Quem já enterrou amigo, vizinho, parente ou aluno (menor de idade!) em função da insegurança urbana e de atos absurdos das forças do Estado sabe o que estou afirmando. Se fosse para debater modelos de eficiência policial, se este fosse o caso da intervenção federal Rio, estaríamos – estão eles – anos luz distantes do que melhor se produziu até hoje dentre os pesquisadores brasileiros – fardados, policiais, juristas e acadêmicos – a este respeito. Se há dúvida, vejam os depoimentos e reflexões nos últimos vinte anos pronunciados por sumidades no tema como o delegado Hélio Luz e Luiz Eduardo Soares. Ambos “acreditam” no aprimoramento do sistema e têm caracterizações muito duras a este respeito.

O modelo policial é arcaico, corrupto e carcomido – o que não implica que todo policial assim se comporta – e especificamente no caso do Rio de Janeiro, já está tudo dito e nada foi feito. NADA. Eis o resultado. Falsa polêmica, grupos de extermínio, prevalência das facções no varejo do tráfico e no sistema prisional, além da existência de milícias. Se não acabar com o Arrego e o Esculacho no Rio, enquanto as comunidades não receberem todos os serviços urbanos e políticas públicas, nada muda. Nada. O resto é só hipocrisia e proselitismo fascistoide de eleitores de Bolsonaro ou defensores do indefensável governo golpista.

 

Apontando conclusões: o assassinato de uma militante negra e o fim das ilusões

O assassinato de Marielle Franco, vereadora e militante negra do PSOL do RJ é a ponta do novelo do show de horrores que é o Brasil, em geral, e o Rio de Janeiro em particular. Toda a pirotecnia da intervenção federal não acarreta mais “segurança” para a população, mas sim a incidência de uma força externa – o Comando Militar do Leste, CML – ampliando prerrogativas para um governo ilegítimo e sua tentação autoritária. Diante dos poderes de fato, dependendo de cada estado e capital brasileira, nada “protege” a militância, menos ainda os e as militantes afrodescendentes. Não é hora de disputar proposição e fazer mesquinharia política, mas é preciso repetir algo que companheiras e companheiros das esquerdas eleitorais insistem em não ouvir. Todas as ilusões do republicanismo não puderam evitar um golpe de Estado em 2016. Todas as ilusões reformistas e “dentro da legalidade” não vão garantir a vida de ninguém. Não dá mais para seguir reclamando que “as instituições não funcionam como deveriam”. Mentira. As instituições pós-coloniais estão funcionando perfeitamente bem. Defendem a Casa Grande e usam de todos os recursos para deixar a maioria “no seu lugar”. Até quando vamos repetir a mesma mentira?!

Bruno Lima Rocha é carioca (do asfalto de Zona Sul, sem hipocrisia), cientista político e professor de relações internacionais radicado no Rio Grande do Sul

 

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