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Desmontando a mitologia liberal sobre a origem da tecnologia moderna

Desmontando a mitologia liberal sobre a origem da tecnologia moderna

Por Ricardo J. Camera1 & Bruno Lima Rocha2

 O VIAJANTE

A questão a ser posta neste artigo é, antes de tudo, o próprio título. Voyager-1 é o nome dado à sonda espacial lançada pela NASA em 1977, com o objetivo de averiguar Júpiter, Saturno e suas luas. No momento, Voyager-1 é o dispositivo da civilização humana mais distante do planeta Terra, nos confins do Sistema Solar, avançando para o espaço profundo e desconhecido.3 É público e notório que este avanço histórico do saber humano iniciou na incubação estratégica dos investimentos do governo dos Estados Unidos em suas agências de pesquisa, não se tratando, portanto, de uma mera questão de mercado. É disso que se trata este artigo. A geopolítica da Guerra Fria como divisor de águas na tecnologia, e suas derivações para o período imediatamente posterior à debacle da extinta União Soviética (URSS).

O LIBERAL

Ora, o chamado neoliberalismo – como clamou o ministro da Fazenda Henrique Meirelles4, titular da economia no governo Temer e presidente do Banco Central nos dois governos de Lula – seria a razão única do desenvolvimento tecnológico das potências mundiais? Por hora, é de suma importância logo afirmar que o neoliberalismo econômico, ou liberalismo neoclássico, cujos pressupostos costumam ser expostos na mídia convencional, é uma teoria cujos próprios autores admitem não haver necessidade de verificação empírica – como afirmou Milton Friedman (“porque meus modelos são racionais?” perguntava o professor de Chicago. Ele mesmo respondia “porque digo que são”) – e que sua coerência interna já é (seria, indutivamente) suficiente para conferir validade à tese5. Tal tese (metafísica), todos já conhecem bem, ou vivem na prática suas mazelas, na medida em que o primeiro resultado socialmente verificável do liberalismo revivido a partir de 1973, é a naturalização e inércia ante as massas empobrecidas. Nesta visão, todos são supostamente iguais perante a lei (mesmo quando a lei garante direitos de herança e não tem nenhuma instituição pública redistribuindo renda ou assegurando direitos), logo, é responsabilidade dos indivíduos (traduzindo-se em individuação ou associação de egoístas) buscar sua própria sobrevivência6.

Desse modo, tem-se o racionalismo “econômico” (suposto e universal individualismo metodológico) e individualista (autocentrado) como motor único do “progresso”, em detrimento de um Estado desregulado – idealmente sem legislações trabalhistas, ambientais, sanitárias, financeiras ou referentes ao uso do território nacional (superfície e subsolo). A partir dos anos ’70, o ocidente deixa o acerto que deu garantias aos trinta anos gloriosos e socializa as “perdas” com a baixa da margem de lucros do capital nos países líderes do eixo Anglo-Saxão. Junto a isso, observa-se o corte de impostos sobre as camadas mais abastadas, de modo que resulte no fim do financiamento das instituições do bem-estar social, como os sistemas universais de saúde, educação, assistência social, garantia de emprego, moradia e afins, em detrimento da chamada liberdade econômica7. Assim, toda a alegada racionalidade de tipo ”trickle down” é, na prática social verificada centenas de vezes, uma forma de concentração de renda e extração de mais valia coletiva.

O Estado, por seu turno, cumprirá o papel de suposto regulador comercial, impedindo cartéis e trustes, ao passo que alocará recursos em prol do mercado. Tal tarefa não significa o apoio ao varejo local, empresas e agricultura familiar (não há, supostamente – nestas teses metafísicas-, um protecionismo para garantir emprego vivo), mas apoio às grandes companhias já internacionalizadas (transnacionais cujo centro financeiro foi reinventado através de holdings em Jurisdições Especiais, também conhecidas por “paraísos fiscais”), uma vez que o patrimônio público é privatizado a um preço agradável ao investidor. Por que os direitos não são vistos como produto de conquistas democráticas, portanto um produto da Ética e da Política, mas um conjunto de meros serviços precificados pelo mercado. Em outras palavras, a sociedade ideal do mercado é aquela marcada pelo homem que é movido unicamente pelo lucro e individualismo, sendo essas regras econômicas um dado universal da “natureza” (daí a dimensão indutiva e metafísica desta panaceia), isto é, valem para todos os tempos e espaços – incluindo os confins do universo para onde a sonda Voyager-1 se direciona.8

Dentro dessa perspectiva, todo o acúmulo teórico nas Relações Internacionais, na Política Internacional, na Economia Política Internacional e em áreas afins são relegados a um segundo plano. Dentro desta ilógica completa, a questão nacional é vista como totalitarismo, a geopolítica é teoria da conspiração, a brutal desigualdade social é parte da paisagem natural, um dado irrelevante, mas que pode ser corrigido pelo próprio mercado. As religiões e seus conflitos são, por sua vez, uma questão meramente individual, enquanto que a liberdade de expressão vai ao limite da convivência (do tipo de controle policial, “xinga mas não briga”). Por fim, a economia “racional” (não há como não ser irônico diante desta barbaridade) tratará de administrar e solucionar os recursos naturais escassos, por meio de um aparato tecnocrático que no mercado é conhecido como businessman, e no Estado, a burocracia9 – cujas posições chaves tendem a se confundir propositalmente10.

DO SPUTINIK AO VALE DO SILÍCIO

Ora, para verificar se esse conjunto é verdadeiro, tem-se como critério de verdade sua verificação concreta, ou seja, sua coerência com a realidade histórica. Para tanto, como estudo de caso, analisamos a formação dos sistemas de satélites dos Estados Unidos, como marco da telecomunicação contemporânea, bem como os meandros estratégicos que envolvem a matéria.

Primeiramente, o contexto histórico do lançamento de satélites artificiais ocorre na insurgência da ordem mundial da Guerra Fria, ou seja, Estados Unidos orquestrando o bloco ocidental capitalista, no âmbito de Bretton Woods, (FMI, BIRD, GATT), sistema das Nações Unidas entreposto e OTAN (o tratado militar com função de proteger a América do Norte e Europa ocidental) (ARRIGHI, 1994).

Tem-se, por conseguinte, uma Europa ocidental destruída e empobrecida, mas que mantém laços paroquianos e colônias, a exemplo da Grã-Bretanha. Além dessa realidade, há os países do terceiro mundo, muitos dos quais ainda sequer eram independentes, sendo mantidas como colônias europeias extrativistas (ARRIGHI, 1994). Por fim, a União Soviética se estende pela Eurásia, sendo a única potência do pós-Segunda Guerra Mundial capaz de contrapor os Estados Unidos. Não se alongando muito neste âmbito, a competição ideológica e geopolítica – chegando ao nível geoestratégico e geoeconômico – foi inevitável.

Dito isso, os investimentos tecnológicos e a necessidade de integração do vasto território soviético impelem o lançamento, em 1957, do primeiro satélite artificial do mundo, o Sputnik-1, inaugurando a corrida espacial. Este é o ponto de partida. A dimensão geoestratégica da Guerra Fria como questão decisiva para os contornos que se seguirão.11

Os Estados Unidos, por seu turno, se vendo defasado frente ao inimigo, passou a investir massivamente em ciência, inovação e tecnologia.

Nesse sentido, o boom dos investimentos em P&D no fim dos anos 1950 e durante os 1960 também está associado à criação de muitos desses FFRDCs que, segundo Hruby et al. (2011), começaram a ser construídos no fim dos anos 1940 e alcançaram o número de 74 FFRDCs no final dos anos 1960 […]. (De Negri, Schmidt Squeff, 2014, p.2).

Os FFRDCs12, ou, em português, Fundo Federal de Pesquisa e Centros de Desenvolvimento, marcou o início da institucionalização para o fomento público de pesquisas destinadas às forças armadas e a tecnologia geral. Este é o nascimento do subcomplexo militar tecnológico e aeroespacial dentro do complexo industrial militar da superpotência. Mais de 30 bilhões de Usd dólares foram investidos em P&D e C&T (FJORDBAK, 1990). “Em 1958, foram criadas a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa)13 e a National Aeronautics and Space Administration (Nasa). Durante os anos seguintes, também foram criados vários laboratórios nacionais vinculados ao Departamento de Energia e cujos objetivos primordiais estavam fortemente relacionados a pesquisas em tecnologias bélicas, particularmente armas nucleares. Estes laboratórios foram criados como Federally Funded Research and Development Centers (FFRDCs): instituições de pesquisa financiadas pelo (e pertencentes ao) governo norte-americano, mas operadas e mantidas por instituições privadas” (de Negri, Schmidt Squeff, 2014, p.10, IPEA). Da mesma forma, foram instituídas a National Science Foundation, Department of Defense, Department of Agriculture, Department of Energy, National Laboratory, entre outros. Tais instituições para-estatais, estatais e acadêmico-corporativas deram sequência frenética ao Projeto Manhattan, acompanhando a primeira fase da Guerra Fria e concorrendo com a URSS por mais de uma década até deslanchar na corrida espacial. Foi este o acúmulo que gerou a vitória estratégica com o projeto Guerra nas Estrelas (o do escudo balístico intercontinental operado via satélite estabelecendo um anteparo de possíveis satélites militares sobre a Polônia) nos anos ’80, na virada do segundo governo Reagan para a eleição de Bush pai e o período de Gorbatchev à frente do Kremlin.

A partir desse arranjo institucional, interligado e programático, o Estado elencou o complexo industrial da saúde, energia e defesa para concentrar os investimentos e os institutos de pesquisa, de modo a promover a criação de todo um setor empresarial privado, de caráter mission oriented, em detrimento das encomendas governamentais – não sendo à toa que Milton Santos (1997) desenvolveu o conceito de desenvolvimento tecnocientífico por encomenda (pesquisa aplicada da tecnociência, cuja versão atual é o desenvolvimento de softwares e aplicativos, estando os códigos fontes e as redes de tráfego e suporte protegidas) , dado que em plena Guerra Fria os Estados-Nacionais não poderiam contar com o surgimento “espontâneo e esporádico” de inventores isolados. Havia a necessidade de soldar os interesses corporativos privados e a academia com uma estratégia nacional de desenvolvimento (CGEE, 2013). Vale observar que quase todo desenvolvimento cientifico tecnológico relevante, desde o período das grandes navegações e a Real Escola de Sagres, derivou de arranjos similares, ou seja, não houve avanço das potências concorrentes em seus respectivos períodos sem alguma forma de arranjo científico, empresarial e estatal, incluindo obviamente uma alta dose de protecionismo de indústrias nascentes e/ou estratégicas, e por vezes incluindo cadeias de valor inteiras.

De volta ao momento de pós-guerra, desse modo, a origem da demanda e lucratividade do setor empresarial em grande parte vinha das compras governamentais, haja vista a existência do Buy American Act, Buy American Restrictions, National Security Act, Defence Product Act, Competition in Contracting Act e National Space Policy Directive. Tais leis determinavam que as agências e setores governamentais privilegiassem os produtos oferecidos pelas empresas locais e nacionais, especificando um mínimo de 50% de conteúdo local, e arbitrando cotas de discriminação, até impedindo a concorrência de empresas estrangerias (CGEE, 2013).

O Vale do Silício, já na segunda metade da década de ’70 e a de ’80, iniciou e progrediu através da condução dos projetos das agencias governamentais. Se o modelo de gestão e processo criativo-produtivo foi inovador em seu tempo, o financiamento e as compras de governo jamais o foram. Mais de 90% da demanda de semicondutores das empresas do Vale do Silício vinha da encomenda do complexo militar. Sun Microsystems, Apple, Silicon Graphics, Cisco System, Fore, IBM, Compaq, NCR, Cray Research, Intel, Motorola, Bay Networks, Hewlett, entre outras empresas famosas, surgiram no âmbito do programa da DARPA, tendo a finalidade expressa de desenvolver semicondutores e softwares para as forças armadas (CGEE, 2013).

SATÉLITES, A ORIGEM NACIONAL

Os satélites governamentais correspondem a 80% do mercado de satélites dos Estados Unidos – afinal, “este país não vai querer que um Doutor Strangelove qualquer ligue e desligue todas as suas comunicações” (VON BRAUN, 1972)14. Mas essa vantagem estadunidense formou-se no início dos anos de 1960, justamente por meio das estratégias explicadas anteriormente. Assim sendo, o governo federal, por meio da NASA e Forças Armadas, financiaram a pesquisa e o desenvolvimento, pela Philco, AT&T e RCA (empresas privadas de telecomunicação) de protótipos de satélites que seriam lançados ao longo dos anos de 1960 (WHALEN, 2014). Em seguida, o Congresso Americano aprovou a lei Communications Satellite Act, que criou a corporação privada Communications Satellite Corporation, COMSAT, a qual rejeitou uma parceria inicial com a AT&T, e lançou dezenas de satélites em orbita. Esta empreitada passou a incluir consórcios com outros países, o que originou um dos dois sistemas de satélites mundiais da época, a International Telecommunications Satellite Organization, INTELSAT, com a finalidade expressa de ter o monopólio sobre as telecomunicações mundiais, sendo majoritariamente controlada pelo governo dos Estados Unidos (WHALEN, 2014). Para constar, o outro sistema de satélites mundiais era controlado pela então União Soviética. Logo, o sistema dominante no pós-Guerra Fria, é o dos Estados Unidos.

Por conseguinte, após a decisão do Canadá de criar uma rede doméstica de satélites em 1972, por meio da Telesat Canada, uma estatal canadense de capital aberto, o governo dos Estados Unidos encomendou da RCA e AT&T um programa de satélites domésticos. Assim, a transmissão civil de dados não dependeria apenas do sistema da INTELSALT. Os satélites de defesa, no entanto, desde o final dos anos de 1960 permanecem sobre controle estatal (WHALEN, 2014).

CONCLUSÃO

Eis a origem da sonda Voyager-1 – citada no início do artigo. Esta viajante interestelar, bem como o moderno sistema de satélites, não emergiram da competição “espontânea” do mercado – isto mais uma das centenas de afirmações falsas, derivadas do pensamento metafísico do neoliberalismo vulgar e difuso . Pelo contrário, os fatos históricos demonstram concretamente que a origem do sistema de satélites dos Estados Unidos – e por consequência, de todo o sistema ocidental, especialmente o dos países anglo-saxões (EUA, Canadá, Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia) – se deu pelo investimento massivo do governo federal (e a conseguinte ampliação de sua dívida pública a partir da década de ’80), cujo qual originou instituições que, de modo orgânico, orquestraram as universidades e os empreendedores privados em direção à uma estratégia nacional de desenvolvimento, reforçando o subcomplexo tecnológico, aeroespacial e eletrônico (incluindo a vigilância e o controle sobre a maior parcela da internet de uso civil e empresarial).

Desse modo, a teoria liberal neoclássica, ou neoliberal – aquela que o ministro da Fazenda Henrique Meirelles advoga, assim como os demais “sábios” da área no Brasil dos financistas – não se verificou na realidade. Em nenhum momento a teoria liberal advoga, por exemplo, que o Estado possa criar uma empresa privada e autônoma, mas atrelada ao interesse nacional, como visto no caso da COMSAT. Muito menos o gasto público exorbitante em laboratórios estatais de ciência e tecnologia, ou leis que protegem e priorizam a indústria nacional. Do mesmo modo, o liberalismo neoclássico não prevê um Estado-Nacional estrategista e aglutinador, ao mesmo tempo em que promove a iniciativa privada. Além disso, a cartilha liberal também não comporta um setor privado engajado em compromissos nacionais. Ou seja, se for para competir no Sistema Internacional (SI), disputando parcelas de poder compartilhado ou hegemônico em determinadas regiões, esta “teoria” não passa de uma doutrina do mais autêntico entreguismo neocolonizado, embora dotada de operadores locais com alguma projeção transnacional.

Assim sendo, bastou elencar para esta análise somente um setor produtivo contemporâneo, o subcomplexo industrial militar tecnológico, para ficar evidente que a teoria liberal neoclássica falha não apenas na explicação desses fenômenos, mas é metafísica em sua aplicabilidade, dado que sua verificação não passa de perigosa propaganda atingindo as condições de vida das maiorias. Este conjunto demencial indutivo não é verificado como teoria comprovada nem mesmo pelo centro nervoso do capitalismo moderno15, os Estados Unidos da América.

Texto originalmente publicado na Voyager

Notas:

1 Graduando em Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – Porto Alegre. E-mail: ricajc@hotmail.com

2 Professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS . E-mail: blimarocha@gmail.com

3 http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/12/nasa-ativa-motor-de-espaconave-20-bilhoes-de-quilometros-da-terra.html

4 (…) e seus 25 antecessores dentro do Banco Central, cujos quais vieram do mercado financeiro nacional e internacional, e para lá retornaram após seus mandatos.

5 DOWNS, Anthony, op. cit., p. 43

6 Chaui, Marilena. 2003.

7 ______. 2003.

8 Chaui, Marilena. 2003.

9 ______. 2003.

10 Joseph Stiglitz, O mundo em queda livre, página 89, Cia das Letras, 2010

11 Sharon L. Fjordbak, International Direct Broadcast Satellite Controversy, The, 55 J. Air L. & Com. 903 (1990)

12 Federally Funded Research and Development Centers

13 Não se menciona neste artigo, mas a DARPA delineou a Arpanet, rede de fibras que promoveria, durante um possível ataque nuclear, uma comunicação segura entre os órgãos do governo. Após interligar o aparato governamental, a Arpanet foi difundida entre as universidades como forma de aprimorar sua eficiência e servir de comunicação rápida entre os centros acadêmicos. Somente nos anos de 1980 e 1990 que empresas privadas investiram no setor, de modo a transforma-lo no serviço popular conhecido como Internet (CGEE, 2013).

14 Palestra proferida no Estado Maior das Forças Armadas – EMFA, em Brasília, no dia 13 de

novembro de 1972.

15 Arrighi, Giovanni, 1994.

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