.Por Luís Fernando Praga.
No meio de tanta decepção com pessoas e instituições, de tanto fascismo, no meio desse passado tenebroso que teimou em voltar, no meio de tanta omissão perante as atrocidades, no meio dessa cruel inversão de valores, que torna o óbvio invisível a certos olhos, em algum lugar desse cenário sombrio perdi minha esperança.
Já perdi tanta coisa na vida: de algumas nem dei pela falta; outras, notei que eram supérfluas e vivi melhor sem; de outras, sinto saudades até hoje; mas, quando perdi a esperança, o baque foi forte, me encolhi e senti que nem valia a pena viver sem ela.
Pensei em como a esperança é uma crença muito particular e em como ela é importante para que as pessoas desejem continuar vivendo.
As pessoas são muito distintas e algumas depositam suas esperanças num mundo sem gays, num mundo sem negros, num mundo onde a mulher “apite” ainda menos, no retorno de Jesus Cristo, na punição do inferno para seus desafetos, no perdão divino, no paraíso depois que a vida acabar, no enriquecimento financeiro, em ter poder sobre muita gente…
Deve ser por isso que os fascistas voltaram a mostrar a cara. Suas esperanças se renovaram diante de uma explosão mundial de conservadorismo, higienismo social, alienação religiosa e opressão das minorias.
Só que a minha esperança era de outro tipo, um tipo que míngua nesse panorama, fica pequena, mirrada, difícil de enxergar. Minha esperança era de que, um dia, vivêssemos num mundo onde todos se respeitassem e fossem respeitados em suas individualidades, em que as evoluções social e tecnológica pudessem garantir dignidade, saúde, segurança, acessibilidade, moradia e alimentação de qualidade a todos, enfim; num mundo onde a liberdade fosse a aspiração maior, onde todos cooperassem por ela e onde essa liberdade fosse o mais importante e revolucionário ingrediente de nossa evolução.
Em suma, minha esperança era daquele tipo de que fascista morre de medo e diz ser coisa de comunista, só que ela sumiu…
Quando me lembro de minha esperança com mais detalhes, percebo que ela não era coisa de comunista, era coisa de ser humano. É bem provável que os comunistas nutram uma esperança muito parecida com a minha e muito diferente da dos fascistas, mas minha esperança não nasceu de uma teoria política e socioeconômica, não sou um grande leitor ou defensor intransigente de qualquer regime imperfeito, imaginado por criaturas imperfeitas, como somos os humanos. Minha esperança foi concebida por minha essência humana e, meio que “sem querer”, ela nasceu, com seu jeitinho próprio e seus caprichos. Fui me apegando tanto, que me vi dependente da bichinha. Crescemos juntos, nos permitimos, eu e ela, e fui uma pessoa feliz, boa parte do tempo que passei a seu lado. Ela me fazia bem!
Fico pensando onde pode estar…
Há dias em que tenho a nítida impressão de que ela morreu. É quando me sinto morto, cansado e sem estímulo de seguir o caminho pelo qual ela me conduzia. Tudo parece mais difícil sem ela, como nadar contra a corrente, como enxugar um iceberg que se derrete em retrocesso e sangue de gente.
Mas eu sou um dramático, um “esquerda caviar” cheio de regalias, que chora de barriga cheia. Minha esperança, por sorte, não depende de mim como dependo dela. Ela só pode estar viva, pois eu não teria resistido à sua morte, entretanto, ela sobreviverá à minha.
Minha esperança, por certo, foi passar uns dias com a mãe, a essência humana.
Todos nós, fascistas, comunistas, golpistas, capitalistas selvagens, crentes dizimistas, ateus e seja lá de que forma a pessoa seja rotulada, todos carregamos a essência humana dentro de nós, porém, dependendo dos penduricalhos que carregamos, das certezas equivocadas, das ganâncias, dos ódios, do desejo de vingança, do ímpeto por competir e derrotar e do apego aos bens materiais, nossa essência humana vai sendo sufocada, oprimida, encolhida, até que se transforma, em casos extremos, num esporo latente da essência humana, um mero potencial escondido.
As pessoas que soterram sua essência sob quinquilharias sem valor acabam por se mostrar artificiais e pesadas demais, pelos supérfluos que carregam. No entanto, elas foram levadas a crer que precisam carregá-los, orgulham-se e ostentam seus preconceitos, outras ignorâncias que aprenderam e seus bens materiais, produzidos por gente escravizada.
Inebriadas pelos engodos com os quais o sistema as alimenta, elas também se escravizam à ilusão da prosperidade econômica e se apegam a uma pretensa inclusão a uma classe social dominante, onde não seriam exploradas ou manipuladas. Um lugar seguro e confortável, conquistado graças a seu mérito e esforço pessoal.
Gente assim, bem lá no fundo, carrega a incompletude de ser um humano cuja essência foi calada, mas a essência humana está lá, querendo florescer, frutificar e fazer daquela uma pessoa íntegra.
Todos sentimos, mais ou menos, o desconforto dessa incompletude, que uma vida de opressões sobre a nossa essência acarreta, mas alguns precisam se mostrar mais corretamente humanos que os outros, pois o sistema impele a competir. Assim se formam os falsos moralistas e os hipócritas, indivíduos perigosos, iludidos pelas inúmeras mentiras do sistema, obcecados por manter as aparências e pretensos detentores de uma perfeição humanamente impossível.
Para tais pessoas, quem não se curva ao jogo do sistema não tem méritos para usufruir de uma condição de vida tão “maravilhosa” como a delas, não merece se alimentar se não puder comprar, não merece acesso ao conhecimento se não puder pagar, não merece a saúde nem a justiça vendidas pelo sistema; merecem, mesmo, é ir pra cadeia, adoecer e morrer. Tais pessoas não se dão conta, mas acreditam que uma multidão de irmãos humanos não mereça nada além de desgraça e morte, muito parecido com a forma de pensar dos genocidas.
Mas esse sistema, abusivo e monstruoso, tem suas vulnerabilidades. Ele é um sistema excludente, isto é, joga suas migalhas para poucos e não consegue arrebanhar todo o contingente humano do Planeta sob suas regras.
A pirâmide social resultante dessa aberração insustentável, onde pouquíssimos exercem o poder de vida e morte sobre bilhões e onde a fortuna de um só homem seria capaz de acabar com toda a fome no Planeta, deixa, em sua base gigantesca, todos os excluídos pelo sistema.
Eu não sou um excluído, sou um incluído e, estando aqui, faço parte do jogo. Minha essência humana grita e eu ouço, mas o que vejo a meu redor é gente buscando oportunidades na desgraça alheia. O que vejo aqui, mais ou menos do meio da pirâmide, é só o que o sistema deseja que eu veja, gente espalhando arrogância e prepotência pelo facebook, gente se achando superior a gente, gente competindo, se matando, acreditando que a vida é isso e que está se dando bem. Vejo o que preciso ver para que minha essência se acanhe, se retraia, desista da rebeldia e da esperança e logo se corrompa.
Eu não vejo nem vivo a real realidade da base dessa pirâmide, não ouço a voz dos excluídos com seu sotaque tão único e tão múltiplo. Eles não existem no facebook e eles não podem ser ouvidos, seria muito perigoso! Eles não podem ser considerados gente como a gente, eles são numerosos demais e precisam ser vistos como inferiores! Eles precisam morrer cedo para que se relacionem com menos gente e tenham menos tempo pra pensar. Eles não podem chegar aos lugares onde as decisões sobre suas vidas são tomadas por pessoas engravatadas, por isso moram nas periferias e nos confins mais escondidos do mundo. Eles não podem adquirir conhecimento e autonomia, eles derrubariam o sistema!
Eles não carregam penduricalhos pesados e, neles, a essência humana sente-se menos soterrada, mais respeitada, natural e importante, com espaço para respirar.
No Brasil eles são muitos milhões, bilhões espalhados pelo mundo, calados, miseráveis e vítimas dos piores preconceitos por parte daqueles que abriram mão da própria essência.
Eles são uma “segunda humanidade”, espalhada abaixo da linha da pobreza e convenientemente isolada de nós pelo manto da invisibilidade da hipocrisia social.
Eles não têm facebook, não aparecem na rede social, no jornal nacional ou na novela, nós não podemos enxergá-los, seria chocante e perigoso demais sabermos que são pessoas como nós, mas a voz da rede globo e dos pastores chega até eles. Eles são muitos e precisam ser pacificados e domesticados.
Diferente do que o sistema insiste em tentar nos convencer, eles são seres humanos muito mais íntegros e muito menos corrompidos que nós.
Eles são privados do conhecimento, privados de saber quem são, privados de saber que são tantos e privados de conhecer seus potenciais, mas só eles podem representar a transformação de que a humanidade necessita.
Não serão os meios políticos disponibilizados pelo sistema nem a nossa esquerda de apartamento, muito menos os nossos fascistoides ignorantes de facebook, os responsáveis por qualquer transformação social consistente: nós fomos criados pelo sistema para gerar polarização e não sair do lugar.
É nas favelas, nos campos e sertões, nos arrabaldes insalubres onde as crianças ainda brincam peladas e felizes que a essência humana se prepara para a revolução e é lá que minha esperança foi se refugiar pra não morrer. É de lá que o poder há de emanar do povo!
É a voz dessa gente que precisa ser amplificada, são as suas necessidades que precisam ser atendidas antes de quaisquer outras e nada pode ser considerado “justiça” se não priorizar as necessidades dessa gente!
É lá que a voz pacificadora e alienante da rede globo e dos pastores precisa parar de chegar!
É para lá que a voz da liberdade e da rebeldia precisa migrar e é a partir de lá que todo discurso de igualdade e justiça social deve deixar de ser discurso e virar ação social!
A trajetória exige coragem, será árdua e eu morrerei, ainda, num mundo injusto e habitado pelo fascismo, mas estou vivo, reencontrei meu caminho, reencontrei minha esperança e não pretendo perdê-la novamente! É com ela e com gente de verdade que desejo estar!