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Carta a Berlim

.Por Jhenifer Silva.

PARTE 1

Ninguém nega que correspondências postais viraram coisa démodé, tamanha a praticidade de escrita e comunicação proporcionada pela era da tecnologia. Para quê manuscrever longas cartas se podemos digitá-la? Ou ainda, se em alguns cliques podemos ver e falar com a pessoa desde o além mar?

No entanto, há também muitas pessoas que sentem e entendem a necessidade de se ultrapassar o formato da comunicação digital. De, pelo menos, não fazer desse meio o modo único e exclusivo de contato. Buscar as problemáticas advindas dessa facilidade tão sedutora quanto absurda é necessário como estratégia de sobrevivência neste tempo de contatos perecíveis, fugazes e, exatamente por isso, lancinantes.

Em vista disso, creio que as cartas a punho são, antes de um retorno saudosista e antiquado ao passado, um dos modos possíveis de se reinventar a presença e a perenidade nas ocasiões de distanciamentos. Uma maneira de se partilhar a vida, de se dirigir ao outro, de se fazer ouvido, mas também de se abrir à escuta. E igualmente uma forma de tentar introduzir alguma ordem a si e ao caos a nossa volta, transpondo, inclusive, a dificuldade de se sentir íntimo e oculto em tempos de interconexões ostensivamente superficiais e públicas, nos quais os likes parecem ser suficientes (mas são?).

Acredito que as cartas sejam, portanto, um bom lugar para tirarmos as armaduras da rapidez, da felicidade instantânea ou da massiva necessidade de engajamento político que as redes sociais acabam nos impondo, de um modo ou de outro. Em suma, cartas são – acredito que sejam – plano de fuga ao mesmo tempo que tática de luta, e não me refiro apenas à crueldade da geografia. Isso me faz lembrar de Herberto Helder e do paradoxo por ele encontrado ao refletir sobre o desejo de ocultar-se por meio da escrita.

Em carta direcionada a Maria Lúcia Dal Farra, correspondente e amiga brasileira, disse o poeta: “Penso que uma pessoa escreve para passar desapercebida, para rodear-se de silêncio, para saber objectivamente que está diferente dos outros, para ocultar-se. Alguma coisa a esse respeito disse eu na parte final do 2º vol. de “P.T.”, nas Antropofagias.

Mas tudo isso é complexo: penso se é forçoso estar oculto, aspira-se a que nos desocultem, a que nos tirem a razão, a que nos deixem desarmados, nus, humanos, frágeis. Porque só assim, descobertos, poderemos ser amados. A decifração é o único ato de amor.

Por isso, apenas se é atingido por certo tipo de decifração. Por isso a gente pode rir de quase todas as pretensões exegéticas. Olhamos para nós mesmos, e vemo-nos com a mesma roupa. Até que chega – quando chega – o temido e amado decifrador, aquele que realmente traz chaves, o que traz armas – o guerreiro. Isto é a história, noutro plano – de Jacob e o Anjo? É a história geral e contínua – mas particular e rara – da bela adormecida, de todas as demandas e esperas, de todas as expectações e atenções, de todas as casas à espera de serem habitadas. Assim na vida; assim na outra vida, cumulada, potencializada, sobrecarregada, mas intensa e significativa, do poema.”

PARTE 2

Tudo isso para dizer que a carta pode ser (creio que é!) um modo vivo e muito potente para lidarmos com o outro, mas principalmente com a gente mesmo, nosso corpo e nosso meio, em meio a esse turbilhão todo que são os dias não apenas nas ocasiões de afastamento, embora seja sobretudo nelas. Porque há também todo um ritual corpóreo envolvendo isto, que é a escrita de uma carta, que não diz respeito apenas à materialidade das palavras: há que se encontrar dia e horário propícios. Ânimo. Local. E há de se buscar uma maneira confortável (espaço físico e posição do corpo – mesa, cadeira, poltrona, cama, rede, chão) para se dizer pela escrita tudo aquilo que se tem para dizer ou tudo aquilo que se quer dizer.

Evidentemente nunca conseguiremos dizer tudo do modo como desejamos esse tudo, porque há um abismo entre pensamento e palavra, porém o exercício é também uma forma de definição e enfrentamento da vida; é uma maneira de colocá-la em movimento. É também um modo de – por que não? – enfrentar o percurso e o percalço com vigor, certa alegria e alguma autenticidade. Esta carta é, pois, um corpo orgânico, pulsante, muito vivo. A concretude do afeto. Do estar afetada pela lonjura, ainda que apenas física. E pela inevitabilidade do porvir que se acerca para todos de um jeito obscuro, contudo (creio) promissor. É, portanto, a busca pelo afeto, no sentido de afetar o teu corpo, causar riso ou sorriso, qualquer coisa que valha este enferrujado ato da escrita a punho.

PARTE 3

Uma carta, penso eu, pode também surtir melhor efeito de toque nas tuas mãos trêmulas por sentimentos variados: a chegada de pessoas desde algures, o inverno rigoroso, o contato avulso com a brutalidade das línguas, o acostumar-se com a rotina do povo, o adaptar-se às diferenças do outro num ritmo que nem sempre é o nosso; tantas coisas que – sabemos – mexem com a gente de maneira tão inesperada e assustadora quanto reveladora. Seria desonesta se não confessasse que esta carta é também a saída possível diante da carência dos dias.

PARTE 4

É curioso como a gente vai vivendo as situações dentro da macrosituação que é a vida e vai se adaptando ao passo que entendendo esta obviedade: a gente se constrói a partir e a depender do outro. E esse outro é um alguém, como são também os objetos e a própria linguagem. Como é ótimo e necessário entender e lembrar sempre disso, consciente de que o sentido não é – e não precisa ser – a dependência destrutiva e anuladora! Porque, vejamos bem, o resultado de uma relação (seja ela qual for) calcada na honestidade, no respeito às diferenças e ao espaço do outro, no companheirismo, no carinho e, por que não, no atrito, só pode ser imenso e belo, desconfortavelmente imenso e belo. E se menciono o atrito é porque não creio que podemos negar tudo o que passamos a conhecer não do outro, mas de nós mesmos, nos momentos de tensão e desacordo.

PARTE 5

Dito tudo isso, acredito que sabemos quão dura é a sabedoria de uma pedra. Sabemos que só é possível enfrentar uma onça quanto menos se é quem se é. Sabemos que derrotas são inevitáveis. E que tudo bem. Sabemos que nem sempre é preciso registrar a paisagem para se ver o todo. Sabemos que estamos perdidos, mas que temos uns aos outros e um coração na boca do inferno. Sabemos que o riso pode ser a saída perfeita para o fim dos dias.

PARTE 6

Hoje, exatamente hoje, só desejo a chance de poder acenar-lhe dos trópicos sem ter a nuca atingida por uma carabina CT-40. Também desejo te mostrar o poder paradoxal (porque também destrutivo) das palavras seiva, sol e sonho, enquanto fazemos uma flor do copo descartável de café. Enquanto fazemos do corpo uma dança, do olhar um tiro. Oxalá queira dizer que é tempo de a pedra movimentar as membranas e preparar o tecido para florescer. Oxalá queira dizer que é tempo de compor o futuro dos livros que contarão a temperatura dos chás.

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