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Literatura ‘é coisa de preto’

.Por Ricardo Pereira.

Carolina de Jesus, Maria Firmino dos Reis, Conceição Evaristo e Lima Barreto

O vídeo em que o jornalista William Waack, da Rede Globo, tece um comentário racista provocou indignação e, como consequência, o afastamento temporário do âncora do Jornal da Globo. Embora o comentário tenha sido feito há cerca de um ano, durante a cobertura da vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, o vazamento aconteceu há apenas algumas semanas.

Nas redes sociais, a expressão utilizada por Waack – “é coisa de preto” – de forma pejorativa foi ressignificada através de uma hashtag que enaltecia personalidades negras das mais diversas áreas. A pseudo superioridade branca sempre se beneficiou da discriminação racial que apaga as contribuições dadas pelos negros – quando não “embranquece” essas contribuições, como aconteceu com o maior escritor brasileiro, Machado de Assis.

As elites da época em que Machado viveu – entre 1839 e 1908 – não podiam admitir que o maior nome da literatura brasileira tivesse origem africana, sobretudo num período em que as ideologias racistas qualificavam o negro como incapaz para o trabalho intelectual. É verdade que as biografias existentes de Machado e sua própria obra mostram-no distante da luta abolicionista do período, preferindo este retratar em seu livros personagens e situações da alta sociedade carioca.

Machado de Assis aos 25 anos

Há biógrafos que insinuam que o próprio Machado aderiu a este “embranquecimento”, mas se não somos capazes de definir ao certo as razões do escritor nem asseguramos estas insinuações, de alguma forma, continua-se extraindo melanina do autor que leitura obrigatória no ensino médio tem sua negritude ocultada. Embora a literatura não faça parte do cotidiano da maioria dos brasileiros, reconhecer que nosso maior escritor tem origem africana desqualifica muitos dos discursos racistas que, infelizmente, perduram até hoje sobre a capacidade intelectual dos negros.

Com Lima Barreto este “embranquecimento” seria impossível, já em sua primeira obra, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” (1909), a discriminação racial e social sofrida pelo personagem-título é combatida. Diferentemente de Machado, Lima Barreto usou a literatura para denunciar as mazelas de uma sociedade de classes. Mas apesar da questão racial saltar aos olhos da sua literatura, este tema demorou a ganhar relevância nos inúmeros artigos, teses e dissertações que sua obra gerou como apontava Joel Rufino dos Santos em “Revisita ao escritor negro Lima Barreto”, artigo publicado no começo dos anos 1980, na revista Estudos Afro-Asiáticos. Se Machado passou por um “embranquecimento”, com Lima Barreto se operou, portanto, um “esquecimento”.

Este ano, a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, maior evento do mercado editorial brasileiro, cerrou fileiras neste processo de “revisita” da obra de Lima Barreto, fazendo dele seu homenageado; soma-se a isto a publicação do livro de Lilia Moritz Schwarcz, “Lima Barreto: triste visionário”, biografia do autor. Schwarcz é uma das principais referências da antropologia brasileira, especialmente nos estudos das relações raciais e aqui utiliza a trajetória de vida de Lima Barreto e de sua família para escancarar a instalação de um projeto de República autoritário e eurocêntrico, que investia em políticas públicas higienistas e sanitaristas sustentadas por teorias eugenistas.

Ainda que tendo aspectos de suas obras negligenciados – e, talvez, por isto mesmo – Machado de Assis e Lima Barreto são escritores constantemente editados. Num país de baixos índices de leitura como o nosso, as reedições de suas obras podem ser explicadas por sempre constarem das listas de livros dos vestibulares das principais universidades mais até do que por suas enormes qualidades. Neste sentido foi bastante oportuna a inclusão na lista de leituras exigidas pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) do “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus.

Tendo como subtítulo “Diário de uma Favelada”, o livro publicado em 1960 traz para dentro do ensino médio, de forma bastante crua, a miséria, o analfabetismo, o sub-emprego, a falta de moradia, a condição da mulher, e todos envoltos pelo componente racial. Moradora da antiga favela do Canindé, na cidade de São Paulo, Carolina de Jesus relata em seu diário o cotidiano de uma catadora de lixo, negra, semi-analfabeta e mãe solteira. A obra de Carolina de Jesus é um dos maiores antídotos ao PL Escola Sem Partido, todas as opressões existentes em nossa sociedade estão nela contidas.

Sendo por demais otimista espero que outras obras de mesmo cunho sejam resgatadas como, por exemplo, o pouco conhecido romance “Úrsula”, escrito pela mestiça abolicionista Maria Firmina dos Reis, em – pasmem – 1859. Estamos aqui diante do primeiro livro da nossa literatura que engloba a questão racial do ponto de vista do negro e apesar de seu pioneirismo segue praticamente ignorado. “Úrsula”, foi relançado em 2017 pela editora PUC Minas, acompanhado do conto “A Escrava”, da mesma autora.

Professora, responsável pela fundação da primeira escola mista, para meninos e meninas, no Maranhão, a trajetória de vida de Maria Firmina é tão atraente quanto sua obra num período em que o espaço social para uma mulher negra era ainda mais restrito, tanto que as primeiras edições de “Úrsula”, não trazia sequer o nome de sua autora.

Foi graças ao livro “Maria Firmina: fragmentos de uma vida”, organizado em 1975 por José Nascimento Morais Filho, que o ostracismo a que sua obra foi relegado começa a ser rompido. Embora não tenha sido ainda o suficiente. Mas para que irmos tão longe? Podemos dizer o mesmo de uma obra impactante como “Pônciá Vicêncio”, da escritora Conceição Evaristo, ainda confinada, infelizmente, aos que se dedicam aos estudos afro-brasileiros.

Publicada em 2003, “Ponciá Vicêncio”, narra, de modo não linear da infância à fase adulta, a trajetória de sua protagonista, menina e depois mulher negra, em busca da reconstituição de seus elos familiares, memória e identidade. A denúncia aqui é mais uma vez da histórica discriminação racial e social que impõe à sua família o mesmo ritmo de trabalho do período da escravidão. É desta desilusão pós-abolição ou contra o discurso dominante que exalta a abolição negando que as condições de vida da população negra não fora radicalmente alterada que “Pôncio Vicêncio” se alimenta.

Seria interessante promover um comparativo entre “Úrsula”, escrito em 1859, e o livro de Conceição Evaristo, mais de um século depois, para assim analisar as diferenças, mas sobretudo as semelhanças, entre as condições a que a população negra encontra-se submetida. Este, a meu ver, é um dos papéis da Literatura e de seu ensino.

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