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Os açougueiros seguem felizes

.Por Alê Freire.

França, décadas de 40 e 50 do século XX. É nesse período que Boris Vian (1920-1959) compõe quase 500 canções e publica mais de 40 livros, além de uma dúzia de traduções. Artista de múltiplos talentos, além de escritor e compositor, também era cantor, instrumentista, roteirista de cinema, pintor, dramaturgo e ator. Tinha vinte anos quando os nazistas invadiram a França no início da Segunda Guerra Mundial.

Por essa época, a questão da morte já lhe era um tema marcante devido à sua frágil saúde (fato, aliás, que o impediu de entrar no serviço militar durante a guerra). Sua produção alia horror com um humor expresso muitas vezes em estilo surreal. Como na canção Les Joyeux Bouchers (Os Açougueiros Felizes, em tradução literal), gravada pela primeira vez em 1955 e cantada por ele próprio. A canção causou escândalo quando foi apresentada e ele teve que alterar alguns versos, a pedido da editora, assim como já havia acontecido com a anti-militarista Le Déserteur (O Desertor).

Brasil, 2017. Cida Moreira, cantora com uma longa carreira estreitamente ligada ao teatro, lança uma versão de Les Joyeux intitulada Tango dos Açougueiros Felizes, faixa do álbum Soledade Solo, gravado ao vivo em formato voz & piano, tocado pela própria cantora. A versão para português é de Letícia Coura, ela também cantora e atriz, da Companhia Teatro Oficina.

Os tempos não são mais de guerra mundial, mas nem por isso são menos perturbadores. 52 anos após 1964, o país sofre um novo e mal disfarçado golpe de Estado. Ainda que sem tanques nas ruas, o ideário de seguir uma cartilha de interesses internacionais se mantém. Desta vez, o rentismo dá o tom e cobra “reformas”, para tornar o Estado “eficiente”, bom pagador de dívidas. O cenário mundial é de uma galopante concentração de riquezas, sendo que em 2016 a renda do 1% mais rico havia superado a dos outros 99% – “tem que sangrar”.

O golpe é eficiente. Em pouquíssimo tempo direitos trabalhistas são esfacelados, os investimentos públicos são congelados por vinte anos, grandes empresas estatais são colocadas à venda e a previdência pública é atacada. A democracia é suspensa, passando a figurar como uma fachada, e todas essas mudanças radicais são feitas sem nenhuma consulta popular – “o tempo do blablablá já foi”.

Uma crescente onda reacionária em parte da sociedade funciona como sustentáculo a essas ações. Para esses estratos, em geral, o problema da violência urbana, agravada pela crise econômica, resolve-se unicamente com repressão. Apesar de ser uma aberração em se tratando de políticas cidadãs de segurança pública, a polícia militar não raro é louvada e durante passeatas pessoas fazem questão de tirar fotos ao lado de policiais, orgulhosas.

No ano anterior ao lançamento de Soledade Solo, Cida Moreira havia manifestado crítica explícita ao golpe no espetáculo Soledade. Diferentemente do estilo da gravação original do compositor, cujo arranjo, para conjunto formado por sopros, baixo e piano, acentua um clima de vaudeville, Cida Moreira imprime um tom muito mais dramático e arrebatado ao tango, quer pelo ritmo vigoroso do piano, quer pela voz rascante, pelas variações de dinâmica, ou então pela opção por escandir as sílabas de certas palavras.

Apesar de ter sido gravado em 2015, o momento escolhido para o lançamento do último álbum, pós-golpe, acaba por criar um vínculo entre a canção composta sessenta anos antes, ressignificada pela intérprete, e o Brasil pós 2016. Neste Tango dos Açougueiros Felizes, ouve-se Cida Moreira, em interpretação rasgada, pintando um retrato do atual momento político de maneira metafórica, irônica e contundente.

Le tango des joyeux bouchers
(Boris Vian – versão Letícia Coura)

C’est le tango des bouchers de la Villette
C’est le tango des tueurs des abattoirs
Venez cueillir la fraise et l’amourette
Et boire du sang avant qu’il soit tout noir

Faut qu’ça saigne
Faut qu’les gens ayent à bouffer
Faut qu’les fros puiss’nt goinfrer
Faut qu’les p’tils puiss’nt engraisser
Faut qu’ça saigne
Faut qu’les mandatair’s aux halles
Puiss’nt s’en fourrer plein la dalle
Du filet à huit cents balles
Faut qu’ça saigne
Faut qu’les peaux se fass’nt tanner
Faut qu’les pieds se fass’nt paner
Que les têt’s aill’nt mariner
Faut qu’ça saigne
Faut avaler de la barbaque
Pour êt’bien gras quand on claque
Et nourrir des vers comaques
Faut qu’ça saigne
Bien fort !

Esse é o tango do açougueiro ali da esquina
Do carniceiro e da cozinheira assassina
Venham comer morango e gelatina (vermelha!)
E beber sangue antes de coagular

Tem que sangrar!!
Pessoas precisam comer
Gordos precisam engordar
Crianças precisam crescer
Tem que sangrar!
Para que os comerciantes
Encham o bolso enquanto antes
Vendam filé sangue ou barbante
Tem que sangrar!
Com o couro faça um paletó
Com os pés um mocotó
Coma a cabeça com jiló
Tem que sangrar!
Coma tudo até o pulmão
Para morrer bem gordão
E criar vermes no caixão
Tem que sangrar!

Esse é o tango da Polícia Militar
Grande orgulho do povo brasileiro
Esse é o tango da violência salutar
Esse é o tango homenagem ao coveiro

Tem que sangrar!
Bata dos pés até a cabeça
Só espere que anoiteça
Bata bem e desapareça
Tem que sangrar!
Bate antes pensa depois
Matar três é melhor que dois
O tempo do blá blá blá já foi
Tem que sangrar!
Se não é você quem mata
Outro vem e a fama lhe escapa
E ainda te chamam de babaca
Tem que sangrar!
Amanhã será sua vez
Amanhã será seu dia
Sem amor sem alegria
Tem que sangrar!

Referências:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Boris_Vian
https://secondhandsongs.com/work/164095/originals#nav-entity
https://musicbrainz.org/artist/89178e43-c91c-4c82-8b06-0c5d73dc67a1

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