A curadoria elegeu como fio condutor uma das alegorias de Vilém Flusser: a escada da abstração, ideia que reflete a perda gradativa do referencial espacial na mediação do ser humano com seu entorno. Para Flusser, o descer da escada reflete a operação humana na cultura, que se distancia do concreto da sua existência no mundo ao encontrar meios de apreendê-lo e representá-lo de forma cada vez mais abstrata. Organizada em nove módulos expositivos, “Flusser e as dores do espaço” explora os insights ensaísticos da abordagem arqueológica de Flusser sobre o ser humano.
A exposição é aberta com uma introdução à biografia do filósofo. Na parede curva do vão central da unidade situa-se “Sem Chão”, intervenção com verbetes, além de objetos, documentos e fotografias. Cada um deles, contudo, está encerrado em dezenas de pequenos compartimentos que o visitante abre aleatoriamente, ao sabor de sua curiosidade. A área de convivência, por sua vez, recebe o ambiente “O vento e a fuga”: detrás de uma cortina de fotografias rasgadas, chega-se a uma mesa com tablets e monitores com 4 entrevistas de Flusser com Miklós Peternak e 4 vídeo-ensaios de Danson Knetsch, sobre a condição de apátrida e o sentimento de exílio cultivados pelo filósofo durante sua vida.
A testeira do quintal do edifício recebe a intervenção “Vampyroteuthis infernalis”, nome científico do molusco abissal conhecido como lula-vampira-do-inferno, e também título de livro de ficção de Flusser de 1988. Ali, são exibidos painéis e imagens em 3D com ampliações das assustadoras ilustrações de Louis Bec (Argélia, 1936) em parceria direta com o filósofo, feitas especialmente para a publicação.
“O concreto e a areia ou o mundo das não-coisas” é o nome da instalação do artista Renato Sass com cerca de 70 QR Codes impressos em vinil na parede do solário, numa espécie de painel voltado para o quintal. Convidado a “ler” por celular os códigos, o visitante acessa conteúdos, adentrando um universo vivo de seres, cores, sons, conceitos e paisagens que, aleatoriamente, propõem a criação de um jogo de enigmas, nas palavras do artista “Como uma `coleção de passagens´, cada ponto não se encerra: para cada visualização desvendada pelo código, a premissa da próxima e estranha descoberta”.
No ambiente “Celeiro de ideias”, no galpão externo, encontram-se textos datilografados, cartas, fac-símiles de colunas e polêmicas em artigos de jornais, livros publicados e traduzidos, áudios, depoimentos em vídeos de amigos, entrevistas, registros fotográficos e projetos especiais dentro de uma atmosfera que alude aos Internationalen Kornhaus-Seminare [Seminários Internacionais do Celeiro], organizados por Harry Pross na aldeia de Weiler nos Alpes alemães de 1984 a 1993, nos quais Vilém Flusser envolveu-se em acaloradas discussões com intelectuais europeus.
Na mostra de artes visuais “Seção dos artistas”, os curadores partiram de textos críticos de Flusser para reunir fotografias, gravuras, desenhos, pinturas, colagens e tapeçaria de artistas de seu relacionamento como Antônio Henrique Amaral, Edmar de Almeida, Ely Bueno, Fred Forest, Gabriel Borba, Haroldo de Campos, Mira Schendel, Niobe Xandó, Samson Flexor e Sérgio Lima. Como não poderia deixar de ser, os textos também são apresentados num diálogo direto com cada uma das obras na galeria.
O celebrado texto “Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”, originalmente publicado na Alemanha como “Für eine Philosophie der Fotografie” em 1983, é o ponto de partida para o módulo “Caixa-Preta”, ambiente escuro semelhante a um estúdio fotográfico, repleto de aparelhos e objetos produtores de imagens técnicas – câmeras diversas, projetores, rolos de filme, chapas de vidro e celulares – que o público pode tatear às cegas à medida que ouve um áudio.
Para Flusser, a escrita é cálculo, processo de codificação em dígitos de um mundo cênico. A partir dessa reflexão, a intervenção “O gesto e a escrita”, situada na parede entre as galerias, propõe uma atividade improvável, em que o visitante faz uso de linha para criar um colar de contas com combinações de letras, ideogramas e pictogramas que é afixado com pinos a uma superfície de madeira, criando uma instalação coletiva a que se somam diversas camadas de escrita.
O último ambiente de “Flusser e as dores do espaço” chama-se “A casa furada”, reduto da intimidade que ora não mais nos protege do mundo. Ele perfaz o que Flusser chama de “terceira catástrofe da humanidade”, precedida por duas outras, a do bipedismo e a da sedentarização. Na casa com janelas e portas lacradas, aparentemente segura do ambiente externo, uma sala branca, um pouco suja, e excessivamente iluminada, tem suas paredes preenchidas por dezenas de telas novas e antigas de TV, além de aparelhos celulares ligados, furos e espelhos de tomadas, por onde o ambiente é invadido pela “ventania da informação e o furacão da mídia”. Nesse documentário sonoro, pensado como uma colagem informacional, a sensação de acolhimento e segurança do lar se esvaem, compondo um cenário de catástrofe.
“O concreto da presença no presente do gesto e do corpo, o registro de cenas em superfícies bidimensionais, a linha unidimensional dos códigos da escrita, e o vazio espacial dos algoritmos computacionais são alegorizados por Flusser como uma escalada decrescente rumo a abstração, na qual, descer um degrau, equivale a subtrair uma dimensão espacial na forma de concebê-lo. Nesse pensamento: subtrair é abstrair”, arrematam os curadores.
A programação completa de palestras, performances e oficinas pode ser vista AQUI. (Com informações da Revista E OnLine)
Flusser e as Dores do Espaço
10/10/2017 a 28/01/2018
Domingo, 10h ÀS 18h30
SESC IPIRANGA
Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga – tel.: (11)3340-2000
QUANTO: Grátis