Cattani é um dos mais respeitados pesquisadores sobre a concentração de riqueza no mundo e lançou recentemente o livro Ricos, podres de rico (Tomo Editorial, 64 páginas), em que mostra que o aumento da riqueza nas mãos de poucas empresas ou pessoas é um risco à democracia, além de uma ameaça ao próprio capitalismo. Ele concedeu entrevista a Flavio Ilha, do jornal Extra Classe.
A entrevista é uma chave para entender a situação atual do Brasil, principalmente porque esclarece como a concentração atenta contra a democracia com o apoio dos pequenos e médios empresários, que pagam a conta de sua própria destruição em benefício de mega corporações;
É o caso da JBS e do Itaú. O que o dono de uma rede de supermercado, de uma pequena indústria ou de uma padaria ganhou com o gigantismo da JBS e do Itaú? “A JBS investiu milhões de reais, centenas de milhões de reais, em todos os partidos, por uma razão bem objetiva: defender seus privilégios”, diz o professor. A JBS financiou, segundo as delações, toda a crise política brasileira: comprou deputados para a eleição de Eduardo Cunha (PMDB) e comprou deputados para o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff (PT). Ou seja, desestabilizou a economia do país gerando desemprego e crise no pequeno e médio empresário.
O Itaú, após decisão do Carf (Conselho Administrativo de Arrecadação Fiscal), deixou de pagar cerca de R$ 25 bilhões de impostos, que poderiam circular na pequena e média empresa. “O golpe do ano passado foi todo financiado por essa concentração, por esse poder econômico nas mãos de poucos. Não estamos falando do empresariado em geral, há empresários sérios e comprometidos com resultados, que cumprem as leis, mas do grande capital, dos grandes conglomerados que têm um controle estrito sobre a política e também sobre a mídia”, diz.
Veja alguns trechos:
Democracia
A concentração de renda com a existência de multimilionários é nefasta para a economia e para a democracia. Para a democracia parece evidente, gera corrupção, tráfico de influência. Mas na economia persiste uma discussão sobre a importância de se acumular riqueza antes de distribuí-la. Em outras palavras, a tese de que a concentração de renda criaria mecanismos de maior eficiência econômica para investimentos produtivos que gerassem mais empregos e oportunidades. Bem, dez anos depois posso afirmar que isso é uma falácia. Uma mentira deslavada. Um discurso dos ricos, que querem apenas justificar seus rendimentos e seus privilégios.
Podres de Ricos
Em nenhum capitalismo, em nenhum lugar, a acumulação volta para a sociedade. Em outro livro (A Riqueza Desmistificada, 2007) eu analiso a situação dos Estados Unidos, onde há uma redução de impostos para os mais ricos, desde o primeiro governo de Bill Clinton (a partir de 1993) até o Barak Obama. Mostro ali que, ao contrário do que justificam os teóricos da concentração, não há mais investimentos, mas apenas mais especulação, o que gera instabilidade econômica e mais consumo de produtos de alto luxo, iates, jatinhos, viagens ao espaço. Os podres de rico têm tanto dinheiro que em determinado momento surge a seguinte questão: investir mais para quê?
Para se incomodar contratando mais gente? Se eu posso ganhar dinheiro, muito dinheiro, com isenções, com privilégios fiscais?
JBS e o golpe
No caso brasileiro, o agravante é que a concentração de riqueza permite comprar, entre outras coisas, o próprio Congresso. Dou o exemplo da JBS, que investiu milhões de reais, centenas de milhões de reais, em todos os partidos, por uma razão bem objetiva: defender seus privilégios. Os bancos, a indústria farmacêutica, o ensino particular, o agronegócio, todos usam essa estratégia. Isso é um atentado à democracia.
O golpe do ano passado [golpe parlamentar de 2016] foi todo financiado por essa concentração, por esse poder econômico nas mãos de poucos. Não estamos falando do empresariado em geral, há empresários sérios e comprometidos com resultados, que cumprem as leis, mas do grande capital, dos grandes conglomerados que têm um controle estrito sobre a política e também sobre a mídia.
A indústria farmacêutica não suportou a ideia de uma medicina preventiva, desenvolvida nos governos do PT. O ideal, para esse segmento, é deixar as pessoas adoecerem para vender remédios. Outro exemplo: o ingresso de alunos das classes mais baixas na universidade pública, que provocou indignação em muitas áreas específicas. Isso evidentemente está associado com concentração de renda e espírito elitista. Mas não é uma exclusividade brasileira, a concentração de renda ocorre em todo o mundo, até na Suécia – que era um modelo clássico de distribuição.
O poder desse pessoal, o poder desses podres de ricos, só aumentou [desde os anos 80]. Eles compram, corrompem, criam leis, privilégios, isenções. E quando tudo dá errado, dão um golpe de Estado ou, se não for possível, mandam o dinheiro para fora e o reintegram à economia quando as coisas estiverem melhores. Essa história de que os investidores estrangeiros estão voltando ao país, por exemplo, é mais uma balela. É tudo capital brasileiro, nacional, capital que está lá fora, que foi obtido de forma ilegal, que está sendo repatriado.
Segredos
É muito mais fácil trabalhar com a pobreza, com os pobres. Entrevistar um papeleiro, um operário, um gerente de fábrica, é tranquilo. Agora, vai tentar entrevistar um grande empresário, vai perguntar ao (Jorge) Gerdau por que ele levou a sede do seu grupo econômico para Amsterdã (Holanda). Primeiro, você não chega perto dele nem com uma agenda especial, de pesquisador. Depois, a informação essencial é protegida, não se torna pública de jeito nenhum. Eu escrevi um artigo sobre fraudes corporativas e apropriação de riqueza que não consegui publicar no Brasil, apenas no México (na revista Convergência), em 2009. Isso que tinha apenas informações públicas.
Primeiro, os muito ricos se protegem mutuamente. Ou seja, transparência (de informações) só vale mesmo para o Estado, para os governos. Nas empresas deles, não mesmo. Segundo: fomentam ideologicamente a ideia de meritocracia, a ideia de que a pobreza é um problema, e a riqueza, em contraponto, é solução. É claro que não é a solução, a concentração da riqueza agrava o problema da desigualdade. Isso é óbvio. Mas essa falsa meritocracia acaba prevalecendo, as pessoas acham que os ricos são, ou ficaram ricos, porque são competentes. Não é verdade, tirando as exceções de praxe.
Mérito-corrupção
A maioria dos grandes empresários, por sinal, frauda as regras da concorrência, do livre mercado, quando fazem aquisições, quando compram os concorrentes. Para os grandes empreendimentos, essas regras simplesmente não existem.
Quem ganha um salário, digamos, de R$ 5 mil aqui, paga imposto de renda compulsoriamente numa alíquota de quase 30%. Já o dono de uma empresa, pessoa física, que ganha R$ 5 milhões de pró-labore, não paga nada, nem um centavo, porque essa renda é lançada como lucro e dividendo – que é isento na nossa legislação. Proporcionalmente, essa pessoa física deveria pagar cerca de R$ 1,4 milhão de imposto de renda sobre esse montante. Mas não paga porque temos uma legislação, criada por um lobby empresarial, determinando essa isenção. As pessoas acham que o fulano é rico porque é competente. Mentira: é rico porque compra privilégios.
As companhias que comercializam commodities vendem oficialmente por um preço abaixo da cotação internacional e recebem a diferença, digamos 20%, 30% do valor de face, diretamente em contas no exterior. Exportam com subfaturamento e recebem a diferença diretamente em paraísos fiscais.
Na fusão do Itaú com o Unibanco, uma taxação superior a R$ 25 bilhões acabou de ser anistiada pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) porque os conselheiros consideraram que não houve ganho de capital na transação. O Carf é o mesmo órgão onde foram registrados inúmeros casos de compra de votos, que envolvem, entre outros, grupos de mídia como RBS e Globo. É claro que isso nunca vai ser manchete porque eles, incluindo a mídia, se protegem. É um quebra-cabeças. Por que a Gerdau, que já mencionei aqui, foi para Amsterdã? Porque é um paraíso fiscal e, dessa forma, se resolve a questão sucessória.
Aqui o imposto de transmissão patrimonial varia de 6% a 8%. Baixíssimo. Nos Estados Unidos, é de 40%. No Japão chega a quase 60%. Em Amsterdã é zero. Ou seja, nossos super-ricos não querem nem pagar o mínimo que a legislação do Brasil exige na transmissão de poder e de capital para os sucessores. Isso é lavagem de dinheiro, uma forma de manutenção da riqueza. É como se houvesse um mundo paralelo ao nosso, do qual nem chegamos perto. O problema é que esse mundo está acabando conosco.
Historicamente esse pessoal se safa em todos os processos, sejam administrativos, sejam criminais. Problemas ambientais, também, como a devastação da Amazônia.
A concentração de renda se retroalimenta porque cria impunidade e privilégios em várias áreas.
Informação
Precisamos de formação e de informação. As pessoas não sabem o que acontece, o trabalhador que paga impostos compulsoriamente acha que todo mundo paga também. A solução é simples: basta os ricos pagarem os impostos que devem.
As pessoas têm que saber o que está por trás de determinadas decisões políticas. Um exemplo: pequenos empresários que aderem a essas campanhas por menos impostos precisam saber que os grandes empresários, que são seus ídolos, não pagam imposto. Quem paga é ele. Se todo mundo pagasse seus impostos corretamente, dentro dos padrões capitalistas normais, o equilíbrio seria muito maior.
O que vemos hoje, não há dez anos, é que estamos chegando ao nível de concentração proporcional ao que se podia observar em 1929. Vai passar desse nível, mais um ano ou dois, não mais, vai passar. E isso não é funcional para a economia. Há uma série de legislações favorecendo a concentração.
Ao mesmo tempo, as camadas médias, os serviços prestados pelo Estado, já não dão conta de manter o sistema em relativo equilíbrio. O que estamos vendo, então, é uma transferência de recursos sem controle que nunca ocorreu antes. Nos Estados Unidos, os executivos de grandes empresas triplicaram seus rendimentos, seus bônus anuais, nos últimos 30 anos. Não sou eu quem está dizendo isso, mas a (revista) The Economist. Eles estão dizendo que vai arrebentar, eles estão pedindo para parar. E ninguém para. O que pode ocorrer, na minha opinião, é uma quebra ainda maior que em 1929. Estamos vivendo a crônica do desastre anunciado. A ganância não tem limites: quanto mais dinheiro, mais forte. Quanto mais forte, mais ganancioso. É um círculo vicioso que só estica mais e mais essa corda. É uma luta ideológica cruel porque nós, os 99% que não temos quase nada, não conseguimos nos sobrepor aos 1% que detém a riqueza do planeta. (Texto Integral)