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Maracanãs: vinte anos de um marco da música regional independente

Por Alê Freire

No começo dos anos 80 do século passado, teve início um processo de reinserção da viola caipira na música brasileira, que se deu por uma via diferente daquela que foi trilhada na chamada música caipira. Enquanto que nesta vertente, a predominância dos conjuntos musicais era de duplas cantando em dueto, tendo a viola presente no acompanhamento, agora começa a surgir a figura do “violeiro solteiro”.

Além de fazer carreira individual, uma outra característica importante que difere o violeiro solteiro do músico de dupla caipira tradicional é o fato dele se mostrar permeável a incorporar em sua música influências diversas daquelas que são mais comumente encontradas na música caipira. “Almir Sater levou a viola para o Free Jazz”, exemplifica Levi Ramiro, fazendo alusão ao festival que teve edições entre 1985 e 2001. “Surgiu a figura do violeiro que tem uma certa aura: [as pessoas comentavam] ‒É da música erudita. ‒É do rock’n roll. ‒Faz uma música diferente”.

Era inevitável que essa abertura resultasse em importantes mudanças de sonoridade na música feita com viola a partir de então. Maracanãs, primeiro álbum de Levi Ramiro, lançado em 1997, é um exemplo marcante desse movimento.

A descoberta dos trabalhos de músicos como Elomar, Vital Farias, João Bá e Dércio Marques, abriu as portas de Levi para um universo sonoro que acabou sendo incorporado à sua criação. Até então, as referências para suas composições se concentravam nos grandes nomes da chamada MPB. Com a mudança, adquiriu uma viola caipira de um luthier (seu instrumento preferencial até então era o violão) e começou a compor usando o instrumento.

Quando reuniu repertório suficiente para seu primeiro álbum, Levi começou a procurar os músicos para o projeto. Sua ideia, a princípio, era que os instrumentistas fizessem os acompanhamentos na base de “levadas”, ou seja, com função preponderante de marcação rítmica e afirmação da harmonia, como é comum no contexto da música caipira. Mas sua propensão a novas experiências possibilitou que o resultado fosse bastante distinto.

Indicado pelo violeiro Ivan Vilela, o violonista, arranjador e cantor Zé Esmerindo elaborou a grande maioria dos arranjos. Com formação que inclui passagem por conservatório, Zé Esmerindo incorporou sofisticação harmônica e contrapontística às músicas de Levi.

Nos arranjos que fez para o disco, o violão em conjunto com a viola soam muito mais como um duo de instrumentos, em que diálogos se estabelecem, do que como uma viola acompanhada de violão. Não raro os arranjos contêm interlúdios instrumentais, o que também é bastante incomum na música caipira. “Para tocar o disco ao vivo, tínhamos que ensaiar bastante, por conta da sofisticação dos arranjos”, revela Levi.

Zé Esmerindo explica um dos recursos de que lançou mão nos arranjos: “Para dialogar com um instrumento mais agudo ‒ a viola ‒ o contraponto com a melodia feito no baixo do violão surge como uma alternativa viável”. O uso desse expediente estilístico é bastante evidente, por exemplo, na faixa-título, quinta do disco.

Além disso, não se deve deixar de notar que sua voz sem vibrato, de timbre claro e suave, é esteticamente muito distinta das vozes normalmente ouvidas nas músicas caipiras tradicionais. Assim, até a moda de viola do disco, Moda da Rosa, possui sonoridade bastante diferente da tradição, mesmo sendo cantada em dueto de terças e não contando com arranjo seu.

Completa o conjunto-base (trio que depois foi batizado com o mesmo nome do disco) o percussionista Roberto “Magrão” Peres. Por essa época, Magrão pesquisava os sons extraídos dos delicados instrumentos de cerâmica que sua companheira, a artista plástica Rosa Morena, fabricava. Não sendo acostumado com as “levadas” características dos diversos ritmos da música caipira, elaborou uma percussão rica em timbres, econômica e leve, coerente com a sonoridade que estava se formando no disco.

Para as participações especiais, foram escolhidas a cantora Ana Salvagni, de voz também sem vibrato (e que cantou a música que talvez seja a mais conhecida do disco, Manga Madura), e o músico José Gramani, dono de um reconhecido trabalho de pesquisa sobre o universo sonoro das rabecas no Brasil, e que extraía do instrumento um som bastante próprio, mais “limpo” e com mais nuances de fraseado que os rabequeiros tradicionais. Contribuiu definitivamente para a criação do som intimista do disco a captação feita com os microfones posicionados próximos aos instrumentos e cantores, e o pouco reverber e compressão adicionados na mixagem.

O disco foi produzido de forma independente (Levi chegou a vender um carro para levantar recursos), numa época em que esse tipo de iniciativa era bastante incomum, se compararmos com o que ocorre nos dias de hoje. Apesar da produção precária, e também considerando que foram poucos os shows de lançamento, o disco teve bom alcance de público e foi recebido de forma generosa nos círculos da chamada música regional. Levi Ramiro expõe assim a sua visão sobre a receptividade que o disco teve:

“O bacana é a gente ter se permitido a isso (o atravessamento de diferentes ideias sonoras). Estava nascendo uma coisa que o pessoal não estava acostumado a ouvir, uma música de composição brejeira com uma disposição de arranjo diferente. As pessoas gostaram do resultado. Gravamos o programa de rádio Estrela da Manhã, conduzido à época pela Inezita Barroso. Balanço Capiau acabou virando tema de abertura do programa por um bom tempo. Em Minas todo mundo canta Louvação. É a minha Romaria.”

O movimento de reinserção da viola caipira nos anos 80 induziu a formação de toda uma nova geração de músicos que usam a viola como centro de suas criações. Não é exagero dizer que Maracanãs acabou se tornando uma referência para vários desses jovens.

Herança de Matuto: uma análise

Na canção Herança de Matuto, Levi Ramiro usa como recurso literário uma misteriosa superposição sucessiva de imagens de objetos, todos aparentemente relacionados ao cotidiano de uma pessoa da roça. Esse movimento, de intensidade quase que vertiginosa, só é interrompido a quatro compassos do refrão, quando uma surpresa se apresenta: em vez de um objeto, o que se anuncia é uma situação que sugere um crime (“uma jura de morte, um dedo no gatilho”). No refrão o mistério é revelado, quando ficamos sabendo que os objetos são a herança deixada por um pai que foi morto em uma guerra, não especificada.

Um chapéu de palha e uma tralha de pesca.

Um rádio de pilha e uma espingarda.

Facão, canivete, uma foice, uma enxada.

Viola e moringa. Uma é meia-regra, a outra é água fresca.

 

O cavalo, o chicote, a espora e a sela.

O bornal pendurado na janela.

A horta e o capado gordo no chiqueiro.

A garrafa de pinga sem um pingo, só o cheiro.

 

Um bilhete de aposta no jogo do bicho.

A roupa tá um trapo e é só carrapicho.

A casa de tábua e a roça de milho.

Uma jura de morte. Um dedo no gatilho.

 

É a herança que o velho me deixou

por levar adiante a estúpida guerra.

Debaixo de sete palmos de terra

que afinal o matuto descansou.

A forma da música é composta por uma introdução, uma parte única e um refrão. Essa parte possui onze compassos de duração e é repetida, com melodia idêntica, três vezes seguidas, o que contribui para reiterar o caráter monótono da enumeração dos objetos. O motivo principal usado nessa parte, formado por uma sequência de dez notas de mesma altura, seguida por uma última nota meio tom abaixo, é apresentado logo no início da frase musical na região aguda da voz, para logo depois ser repetido em uma outra altura, mais grave, com final ascendente, ao invés de descendente.

Na parte da canção as notas são todas curtas, o que aproxima o discurso musical da fala, uma vez que se trata de alguém enumerando objetos sequencialmente, de forma contínua. Em contraste, a melodia do refrão, cujo discurso da fala é passional, possui notas mais longas. Também no refrão, o anúncio da morte do velho, momento que se pode considerar como sendo o clímax da canção, é representado com uma melodia ascendente por semitons, o que reforça o caráter dramático da letra nesse trecho.

As características composicionais presentes em Herança de Matuto, portanto, contribuem para que a condução da letra pela melodia seja bastante adequada à mensagem que está sendo passada. O acompanhamento da viola no trecho que precede o início do canto, feito em forma de ostinato, parece anunciar que uma tragédia está para ser contada.

Ficha técnica
Direção e produção: Levi Ramiro e Zé Esmerindo
Gravação: Studio Cristal Audio ‒ Campinas, SP
Engenheiro de gravação: Paulo Evangelista
Mixagem: Zé Esmerindo, Paulo Evangelista, Levi Ramiro

Músicos
Levi Ramiro: viola caipira, voz e arranjos
Zé Esmerindo: violão, voz e arranjos
Magrão: percussão
Ana Salvagni: voz em Manga Madura
José Eduardo Gramani: rabeca em Manga Madura e Comitiva do Corrêa
Netinho: berrante em Comitiva do Corrêa

Todas as músicas são de autoria de Levi Ramiro, exceto Estiva Grande (Levi Ramiro e Zé Esmerindo)

Link para ouvir as músicas

Arte gráfica

CD no Digitalk7

https://youtu.be/4CztpA-g7bo

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