Por João Neves
Dito isso, procuro entre as notações melódicas entoadas nos últimos anos alguns estímulos para contaminar nossa transpiração. A primeira incitação chegou no dia anterior a uma das principais ações populares ocorridas no ano de 2017 (greve geral organizada na emblemática sexta-feira, 28 de Abril). Refiro-me ao disco “Espiral de Ilusão” do cancionista Criolo, lançado nas plataforma “livres” da web no dia 27 de Abril – emblemas que a historiografia, preocupada com a música popular brasileira, terá que enfrentar em um futuro próximo.
A obra é revestida por uma capa que nos remete aos tempos da arte modernistas, em que corpo humano, formas geométricas e colorações simples compunham uma narrativa sobre as tensões da modernidade. A partir dessa imagem que entramos nas reflexões Criolianas, as quais, como afirma o músico, são composições que vieram – “No meio de 2016, [momento em que] muito sentimento, muita emoção, muita coisa desaguou”¹. Sobre o ritmo que embalou a poesia, ele conta que “não veio em Rap, não veio em Raggae, nem em Bolero. Veio em Samba”, de gafieira, de roda, de raiz, de partido-alto, canção e de breque. As batidas do morro, das margens, dos terreiros, e os cantos dos rincões marginalizados harmonizaram os sentimentos de Criolo.
“Acho que você não me entendeu
Meus meninos são o que você teceu
Em resistência ao mundo que Deus deu
Então pare de correr na esteira e vá correr na rua
Veja a beleza da vida no ventre da mulher
Pois quem não vive em verdade, meu bem, flutua
Nas ilusões da mente de um louco qualquer
E eu não aceito, não
Eu não quero viver assim, mastigar desilusão
Este abismo social requer atenção
Foco, força e fé, já falou meu irmão
Meninos mimados não podem reger a nação”
(Menino Mimado, Faixa 3)
Confesso que precisarei ouvir essa canção outras tantas vezes para compreender os pormenores que engendram a performance. De imediato, no lançar dos olhos, um rápido filme se reprisa: Governos petistas, desestruturação da ordem, manifestações populares, golpe, Estado de exceção, as pelejas dos movimentos da história presente. Repito: “Meninos mimados não podem reger a nação”.
Nessa rápida passagem, durante a terceira noite do inverno, a moça nos trouxe acalento. Acompanhavam-na músicos que profanavam sonoridades no tambor, na rabeca, na bandola, no ilú, na alfaia e no carcabous, instrumentos nos quais se encontravam com os toques do Triângulo, do gonguê e do caxixi. Ritmados por esse casamento, violão, viola de sete e de dez cordas dedilhavam as lamurias dos sertões, enquanto o trombone e a trompa sopravam aflições. Nesse ritual todos dançaram e aprenderam a cantar ciranda. Corpos se mexiam em comunhão, mãos entrelaçadas…
“Cantar ciranda é o que eu me dediquei
Mas eu pensei que não tinha resultado
Cantar ciranda é o que eu me dediquei
Mas eu pensei que não tinha resultado
Fiquei parado, bati a porta e pensei
Como cirandeira, eu sei
Ir a curva do encantado
Fiquei parado, bati a porta e pensei
Como cirandeira, eu sei
Cantar para os apaixonados”
(Cantar ciranda, Faixa 7)
Em um determinado momento do espetáculo desatei minha mãos e fui andar pelo espaço. Queria sentir a energia circulando. Me interessava ver as formas que tal ritual gerava e como nossos corpos respondiam aqueles (im)pulsos. Notei, enquanto caminhava entre xs muitxs, que eramos mais de 1 mil e formávamos um corpo coletivo. Se tivesse a oportunidade de fotografar do alto o que se ocorria na terra – pensei comigo, estimulado por flores – teríamos a imagem de um célula.
[Acho que ainda lembro algo de Biologia]. A ciranda do centro seria o núcleo, enquanto as rodas menores poderíamos considerá-las como os lisossomos ou as mitocôndrias. Os casais enamorados considero os centríolos e os dispersos – como eu – ribossomos. Juntos pulsávamos desejos de coletivização. Que assim, seja…
João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.
https://www.youtube.com/watch?v=IJ3m29FRZOk&t=1770s