Por João Neves
Nas ruas empedradas do bairro Vila Industrial em Campinas/SP, a qual ressoa sons de trepidações e intensidades de memórias, jovens cultivam, fortificam e dissipam ecos da luta do povo preto – marcas escondidas em nossa história. Nas veredas daquele bairro, que antes percebia como refúgio de reminiscência, novos quilombos (in)surgem e denunciam, a partir desse espaço, os genocídios promovido permanentemente por nossa cultura racista e escravocrata. São estes os tambores que vibram na casa coletiva “Margem 31”.
Neste espaço reconfiguram-se – com software livre, diga-se de passagem – as premissas de nossa sociedade. As discussões sobre filosofia diaspórica, quilombagem digital e cultura negra talham as paredes da residência. Livros, hardwares, pinturas e mobiliário se dispõem pelos cômodos da casa organizando-nos.
As formas do lugar disparam vozes conscientes que propõem encontros para agenciarmos outros desejos. Música, filme, literatura e culinária se misturam para forjar subjetividades engajadas e comprometidas com o canto do povo preto.
Dentre tantas referências, dissolvidas entre as linhas que tecem o lugar, me deparamo com o livro “Muzimba: Na humildade sem maldade” o qual registra os batuques de Akins Kintê, poeta e arte-educador “nascido no berço do skindô e criado nos terreiros do ziriguiduns”. Sua poesia é condensada por rimas precisas, criadas sob a influência do rap. Seguindo as trilhas dessa prática musical, decantam-se, entre os versos ritmados, as cores das diásporas africanas.
Kintê desenha em cada página do livro as experiências cotidianas, as sensibilidades e as arquiteturas que pulsão nas periferias e nos quilombos urbanos. As palavras escolhidas pelo poeta deixam ver o trabalho exaustivo (“Refúgio do Operário”), a luta contra o racismo (“Para os racistinha da internet”), a sexualidade/sensualidade (“Ebulição”) e as resistências do povo preto e favelado (“Poemunição”). Forma e conteúdo se completam em meio a uma fala militante, escaldada por sentimentos de revolta, já que, como o poeta pontua,
“Parece que nós tamo em tempo de escravidão,
parece os castigo da antiga senzala
parece terror ou ficção essa ideia
mas e assim que cobram os preto na pauliceia.
[…]
Parece que nóis é bicho, por isso não me calo
parece que nóis jaz, antes de canta o galo
parece abatimento, por isso te falo
to ligado que é da hora, mas foda São Paulo” ¹
Firme em sua rima, o poeta concentra esforços para usar múltiplas linguagens a fim de conectar diferentes desejos artísticos. Para isso, lança mão de formas e provocações estéticas que extrapolam a letra gravada no papel. Desenhos, cores e formas nos instigam a acompanhar as mensagens que se processam no decorrer da leitura. Fica claro que a composição gráfica, as divisões temáticas e as disposições dos poemas foram artesanalmente talhados entre as páginas do livro e o mesmo ocorre com a produção do disco “Pelamô”, produzido pelo poeta em parceria com Tico Pro, o qual retrabalha, em forma de canção, alguns dos poemas de Kintê.
Os diálogos musicais, no entanto, atravessam outros oceanos e ganham imagens em vídeo clipes. O poema “Não é mulata essa preta”, tensiona, áudio e visualmente, o senso racista comum hegemônico desde de os tempos da escravidão. Beats e samplers formam o ambiente sonoro, enquanto Kintê e Dani Pacheco caminham por becos e vielas desconstruindo o mito da mulata.
Conclusão:os tambores dos quilombos urbanos urgem! Outras histórias serão escritas!
Mais informações: http://akinskinte.com.br/
¹ Importante notar que Akins Kintê é Arte-Educador na Fundação Casa, desde de 2008 pela ONG Ação Educativa. Organizou o livro Evoa o pássaro cativo junto com os internos da UI Itaquera e outro trabalho intitulado Litera-rua-liberdade através das palavras, com os adolescentes da UI Fazenda do Carmo.
João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de pesquisa em música popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.