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A juventude, sob as lentes de Bergman

Bruna Pereira Caixeta

Juventude, ou mais fielmente, Interlúdio de Verão (“Sommarlek”, Suécia, 1951), a primeira das obras-primas do célebre Ingmar Bergman, é uma trama trágica, arranjada, paradoxalmente, nas mais belas e felizes cenas de lembranças de uma bailarina.

Marie (a bela Maj-Britt Nilsson), uma bailarina jovem infeliz, prestes a entrar no palco para realizar o ensaio final do espetáculo “O Lago dos Cisnes”, recebe um envelope. Nele, encontra o diário de Henrik (Birger Malmsten), outrora seu primeiro amor. Surpreendida, Marie, então triste, fica melancólica. Minutos seguintes, no momento da dança das bailarinas, no ínterim em que a bailarina fica entre seu diário e o espetáculo, um caos se instala: a luz é apagada, as bailarinas obrigadas a deixar o palco, o ensaio, interrompido.

O ajudante que ergue e desce a cortina do teatro, emblematicamente o responsável pela abertura e fechamento de um espetáculo, anuncia sua intuição de que há algo estranho naquela atmosfera. Súbito, o momento de preparação para o palco cede espaço para cenas de lembranças de um romance de juventude, e, a vida de Marie, então por ela mesma aprisionada e adiantando a velhice, se liberta e rejuvenesce.

Marie se escondera na disciplina e dedicação árduas de uma vida exigente consigo mesma no aperfeiçoamento do ofício profissional, por medo de ser novamente subtraída de uma grande felicidade, por um enorme infortúnio. Nos seus 18 anos de idade, após viver momentos muito felizes com Henrik em um verão, perde-o numa tarde em que nadavam num lago, e este salta do alto de uma pedra à água e cai sobre pedregulhos. O episódio trágico fica marcante na vida de Marie menos pela perda de um amor, que o de sua juventude.

A partir daí desenvolve um modo de vida que nomeia por “muro”, na ilusão de ficar protegida de infortúnios. A saída é escolhida é encorajada pelo seu tio Erland (Georg Funkquist), um tipo asqueroso, que na frente da esposa triste e judiada (Renée Björling), não disfarçava a paixão que tivera (e mantinha bem viva) pela mãe de Marie, e transferia à filha com insinuações e provocações abusadas. Erland, na esperança de um dia ter Marie como mulher, faz-lhe a sugestão de criar um “muro”, resguardando-se das pessoas e da vida. Vencido pelo insucesso de ter a sobrinha como companheira, e notando-a cada dia mais mal, muitos anos após do episódio da morte de Henrik, resolve enviar o seu diário a Marie. Deste modo, devolve-lhe momentos felizes.

Aberto o diário, tomam parte as belíssimas – pela fotografia, pela beleza natural dos atores, da sonoplastia, das paisagens e gestos cândidos -, as cenas de amor da juventude de Marie e do amor adolescente. Estamos diante da ingenuidade, de olhares sonhares e apaixonados, do excesso de pudores, da falta de malícia de um para outro e para com o mundo, do conhecimento nulo dos riscos da vida, a manifestação sem medida de sentimentos; um mundo, enfim, limitado a trocas de carinho e reduzido a dois. Esta retratação de um dos episódios mais banais – descritos e caracterizados de forma tosca em muitos filmes -, é, neste, bela.

Bergman não anula as evidências e mesmices típicas do romance adolescente, mas não deixa isso em primazia, o diretor sueco além de priorizar a psicologia, a beleza e a vida que há na gratuidade da inocência e dos gestos pueris e sempre alegres dos namorados, escolhe a história do amor adolescente, grande marco da fase da juventude, para retratar a perda da juvenilidade em uma vida ainda jovem, e os prejuízos do envelhecimento psicológico prematuro.

Após ler o diário e viver em lembrança o seu passado feliz, Marie regressa ao local onde passara um verão com Henrik e onde vivera uma vida muito distinta da de agora: viva, feliz, livre. A volta a faz se confrontar com ela mesma, com esse estado existencial infeliz do presente. Torna-se memorável a cena em que indo visitar a casinha de bonecas à beira do lago onde costumava passar horas com Henrik, cruza o seu caminho uma velha vestida de preto.

A personagem é um recurso especular bergmaniano, que nos permite visualizar a condição em que Marie está, e, terminaria por permanecer, se o diário não viesse alterá-la. Marie está como a decrépita de preto: velha, tomada pela viuvez, ou ainda, uma viúva envelhecida. Marie decretou para si, velhice na juventude, morte em vida. O muro que se impôs não apenas a protegera, mas trancara-a. Tornou sua vida estática, sem anseio de vida e alegria.

A jovem fez-se bailarina e foi esconder-se neste ofício para proteger-se da vida, com medo de viver – por isso, ser, enfim, cabíveis as exclamações de seu colega de coreografia, emblematicamente um palhaço: “Marie, você não ousa tirar a maquiagem e nem ousa ser maquiada. E seu traje? É como se não o tirasse do corpo!”.

O filme de Bergman é uma história que, como observou Pauline Kael, contrasta decadência e juventude, corrupção e beleza; no entanto, mais que isso, é uma história sobre a perda da juvenilidade e da contração da velhice como estados psicológicos – no caso de Marie, por medo e trauma.

O namoro adolescente e a desventura sofrida por Henrik, ao contrário de desenvolverem um enredo de romance romântico trágico, são o mote de Bergman, um dos grandes mágicos da psicologia humana do cinema, para ilustrar emoções mais complexas e trágicas, como esta do estado interiorizado de viuvez e velhice fixado a si mesmo. A escolha de Bergman por explorar esse tema por meio de cenas alegres, jovens e esperançosas é uma maestria; é um voto pela eternidade da felicidade e da juventude enquanto estados de ser.

Finalmente, a bailarina Marie chega para a nova tentativa de reapresentação do espetáculo irrealizado pela queda de energia, outra. Tal qual chegara o tempo da reapresentação do espetáculo de balé, chegara daquele da reapresentação de sua existência. Os seus dias de vida lembrando o amor adolescente trouxe-lhe a vida novamente. Marie é, agora, uma bailarina dançarina, não bailarina para ter com que labutar; seu balé é dança, não esconderijo; é alegre, é vivo, não triste, sem viço. Completa o resgate de sua juventude, o aceite ao convite para começar uma relação de Nyström (Alf Kjellin), um audacioso jornalista com quem nos últimos tempos tinha se envolvido.

O desfecho escolhido por Bergman soma mais um elemento que alude ao clássico enredo de “O Lago dos Cisnes”, em cuja estória a moça aprisionada no corpo de cisne é libertada pelo amor. Esse final feliz, aparentemente romântico melodramático, no entanto, é de novo a escolha pelo retrato da juventude valendo-se da metonímia da relação amorosa. Consiste em uma homenagem final ao viço, novamente à juventude em vida; homenagem à vitória sobre a velhice e a viuvez na vida vivida.
Um belo filme, Juventude. Fico com Godard, quem disse que este é o filme mais bonito de Bergman.

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