Por Taís Vinha
Cresci fazendo culto no lar, frequentando evangelização em centro espírita, mocidade, participando de trabalhos de cura e mediúnicos. Aprendi ainda muito nova que o aborto deve ser proibido pois o espírito que está reencarnando se conecta ao embrião no momento da concepção. Abortar é negar ao espírito a chance de reencarnar. Não apenas aceitei essa máxima como, durante anos, a tive como cláusula pétrea no meu sistema de valores.
Me tornei mãe e procuro transmitir aos meus filhos essa doutrina que sempre me segurou nos piores perrengues da vida. Um dia, conversava com um dos meus filhos sobre o aborto e ele me disse que era a favor.
Aquilo me chocou. “Como assim a favor do assassinato de inocentes? Como assim tirar do espírito a chance de reencarnar?”
Meu filho argumentou: “Mãe, esse é um conceito religioso.”
“Sim, mas é um conceito que tenho absoluta certeza que é correto”, afirmei.
“Mãe, vivemos num estado laico. E você está defendendo uma lei que vale para todos os brasileiros baseada na sua religião. Você critica tanto a bancada evangélica, que faz leis baseadas em crenças religiosas…qual a diferença da postura deles e da sua?”
Engoli seco. Não tinha como argumentar. O moleque tinha razão.
Confesso que fiquei chacoalhada com este argumento. Mas ainda assim segui pró-vida, procurando me informar melhor sobre os fatos, mas, dessa vez, procurando enxergar de uma perspectiva laica.
A ficha realmente caiu (demorou, mas caiu) quando me dei conta que, mesmo com a proibição, as mulheres continuam abortando. Isto é, a proibição não protege o feto. Os espíritos continuam não reencarnando. E coloca em risco as mães, principalmente as pobres que procuram bocas de porco para fazer o que o estado lhes nega.
A minha arrogância espírita me impediu enxergar que a proibição do aborto é como um tapa olho que me permite dormir sossegada achando que vivo num país que condena uma prática horrível, mas que na verdade fomenta uma outra, muito pior, que mata o bebê, coloca em risco a vida e a saúde da mãe e alimenta uma rede clandestina e inescrupulosa de aborteiros sem qualificação, higiene e compromisso com o bem estar dessas mulheres, jogando-as para o SUS resolver quando dá ruim.
Proibir faz bem pra minha consciência. Mas não faz nada bem para diminuir o aborto.
Me desculpem companheiros espíritas, mas estamos fazendo tudo errado. Queremos defender a vida, mas apoiamos uma lei que faz com que o número de óbitos seja maior! Com o risco de perdermos outra vida, que é a da mãe.
Demorei para sair do armário quanto a esse tema, por entender que é ponto pacífico no meio espírita. Mas Kardec nos ensinou a só acreditarmos naquilo que passa pelo crivo da razão. E minha razão me impede de seguir contra a proibição.
Mantenho-me contra o aborto. E jamais abortaria. Mas sou a favor da legalização.
Porque não posso impor minhas crenças religiosas aos outros (isso é fundamento espírita), porque tenho que respeitar o livre arbítrio de cada um (outro fundamento espírita) e, principalmente, porque diante dos números, proibir é ingênuo. Ou hipócrita.
Não consigo mais dormir tranquila sobre a montanha de fetos abortados que se avoluma diariamente debaixo do meu tapete enquanto finjo que vivo num país livre do aborto.(do Blog Ombudsmãe)