No Rio de Janeiro, metade das pessoas encarceradas não teve um julgamento e não recebeu uma pena. Elas aguardam a sentença, situação que deveria ser exceção. A revelação é da pesquisa Imparcialidade ou cegueira: um ensaio sobre prisões provisórias e alternativas penais, divulgada hoje (14), no Rio de Janeiro.
Entre as mulheres, 73% são de presas provisórias, condenadas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, como mostrou levantamento da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) também citado pelo Iser.
O documento mostra também que, quando um juiz julga um caso, a maioria desses presos é absolvida ou liberada da cadeia, sinalizando que a prisão provisória pode ser evitada, inclusive pelo custo – cada preso consome R$ 760 por mês dos cofres públicos.
A pesquisa foi feita pela organização não governamental Instituto de Estudos da Religião (Iser), em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Por mais de um ano, especialistas em direitos humanos e segurança pública acompanharam audiências de custódia e obtiveram e cruzaram dados do sistema penal.
Próximo à média nacional de 41%, o Rio de Janeiro tem 42,7% de presos provisórios do total de mais de 50 mil detentos nas 50 penitenciárias do estado, segundo o Iser. Eles custam R$ 38 milhões por mês, embora ao final do processo legal, 54,4% recebam uma pena alternativa.
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“Ou seja, são pessoas que poderiam estar respondendo em liberdade, o que é um direito, a liberdade deveria ser a regra e não a exceção”, afirmou a coordenadora do estudo, Paula Jardim Duarte.
Na avaliação da especialista, as prisões provisórias refletem uma “cultura punitivista” do Judiciário, que espelha um “clamor social”. “As pessoas acham que punindo mais e prendendo mais a gente teria uma sociedade segura, quando não há nenhuma correlação entre o número de prisões e a diminuição de crimes violentos, ninguém conseguiu provar isso”, sustentou Paula.
Reincidência no crime
Ao citar dados de pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), o Iser afirma que, ao contrário do que diz o senso comum, a reincidência no crime é maior entre as pessoas que já ficaram presas. A cadeia, segundo a especialista, retira a dignidade e humanidade do indivíduo, o que desestimula a reflexão sobre o ato penal e dificulta uma mudança de cultura.
No Rio, a prisão provisória é experimentada por uma maioria de jovens negros, com baixa escolaridade. Os pretos e pardos chegam a 72,57% dos encarcerados, mesmo sendo 52,29% da população do estado, indicando uma política criminal seletiva, afirma a pesquisa.
Contribui para o alto número de presos provisórios a resistência de juízes do estado do Rio às penas alternativas, principalmente, em casos de tráfico. No Rio, essas medidas são aplicadas em apenas 35,5% do total de casos, o que faz o estado ocupar a quinta posição entre aqueles que menos soltam após as audiências de custódia – que colocam o juiz frente a frente com o preso para ponderar sobre a manutenção da prisão cautelar. A média nacional é de 50% de solturas com as audiências.
Juízes extrapolam atuação
Na avaliação da Defensoria Pública do Estado do Rio, que teve acesso aos dados, os juízes têm abusado do argumento da “garantia da lei e da ordem” para manter pessoas na cadeia, desconsiderando a “essência” da prisão provisória, que é a necessidade de evitar fugas ou ameaças a testemunhas.
“O dispositivo da garantia da lei e da ordem tem sido um coringa para justificar esse tipo de prisão [provisória]”, disse o subcoordenador de Defesa Criminal da defensoria, advogado Ricardo André de Souza.
“As sentenças não falam em antecipação de pena, isso não é declarado, mas seguem essa ideia generalista que admite tudo, desde uma periculosidade, que está na cabeça do juiz, até a possibilidade de uma grande repercussão na imprensa e que não têm base na realidade”, afirmou.
Para o defensor, o Judiciário, que deveria agir como “mediador” na sociedade, extrapola a própria função, atuando mais como mais um braço das forças de segurança. “Juízes, no lugar de assumir a vocação que, acredito, seja ancestral da função, que é conter abusos e racionalizar o poder punitivo, parece que se identificam mais com as funções policiais do que [com a função de] garantidor de direitos fundamentais previstos na Constituição”, criticou o defensor público.
Pela lei, a prisão, em casos de crimes como furto, estelionato, alguns casos de tráfico de drogas e delitos sem violência ou grave ameaça, pode ser substituída por penas alternativas.
Entre elas, o monitoramento, por tornozeleira eletrônica, o comparecimento periódico à Justiça, a proibição de frequentar determinados locais e estabelecimentos, além do recolhimento domiciliar de noite e em dias de folga, quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos.
Como na Lei Maria da Penha, em que os homens agressores de mulheres devem frequentar uma reabilitação, Paula Jardim aposta que as alternativas penais têm mais chances de contribuir para uma mudança de comportamento e de cultura. “A prisão retira a individualidade e a humanidade, componentes importante para o sujeito se responsabilizar por seus atos”, disse.
A Agência Brasil procurou a Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro para comentar as críticas, mas a entidade não retornou até o fechamento desta matéria. (Edicão Carta Campinas / Agência Brasil)
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