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Bolinhos de Chuva

Por José Roberto Cabrera

Já fazia alguns dias que tinha feito a primeira visita à Tia Lucinha desde que ela recobrara a consciência. Apesar do grande afeto e das histórias em comum que nos ligava, as batalhas do dia a dia, os amores, os filhos, os amigos, os projetos não nos permitia manter o contato de antes. Muitas coisas haviam mudado e agora era se adequar aos novos ritmos.

Mas somos o que somos pelo que vivemos e às vezes só quem dividiu certos momentos é capaz de entender seus significados. Quem não tem uma boa história, quase secreta, com algum amigo ou parente que quando se reencontram vem à tona? Eu e tia Lucinha tínhamos várias. Muitas repletas de sutilezas que eu mesmo nem lembrava, mas ela não perdia um detalhe, nem se esquecia de ninguém.

No nosso reencontro ela me encheu, além de abraços, de um monte de perguntas. Algumas respondi de pronto, mas não tinha certeza de que ela as compreendeu, outras relutei, pois achava que naquele momento não eram adequadas. Afinal, foram 12 anos desplugada e isso cobra um preço.

Resolvi visitá-la numa tarde de sábado chuvosa, daquelas que nem dá vontade de sair de casa. O caminho não era tão longo, mas basta cair umas gotas no chão e o trânsito fica lento. Dá a impressão que todos desaprendem a dirigir e o caos se instala. Não bastasse isso tinha que lidar com as lombadas, quando criança elas não existiam. Aliás, dá a impressão que nosso processo evolutivo sofre algum tipo esclerose. O homem inventa a roda, utiliza-a no trabalho e para impulsionar os transportes. Coloca os animais como força motriz, a carroça, depois a carruagem. Melhora seus sistemas de amortecedores e freios. Incrementa o processo colocando borracha nas rodas e um motor que dispensa o cavalo. Asfalta as vias para melhorar o percurso e a velocidade. Estabelece regras para os condutores. Cria um sistema de transporte coletivo e uma série de inovações para diminuir o tempo das viagens, a segurança e o consumo de combustíveis até que aparece alguém que inventa uma lombada.

Aí pronto. Você vem na casquinha do acelerador para gastar menos combustível e é obrigado a reduzir a marcha e acelerar para pegar velocidade e, em seguida, dali à 100 metros outra lombada e mais combustível jogado fora. Se você tá num busão lotado das duas uma: ou o motorista freia jogando aquele sujeito que acabou de sair do serviço e que não teve tempo de tomar banho sobre suas costas, exigindo o máximo da sua capacidade de apneia, ou o busão passa direto pela lombada como se você tivesse num parque de diversão, sem diversão. Se a lombada é para segurança do local, encha de radar, mas tira a lombada. Imagina a economia de combustível.

Tia Lucinha ainda precisava de cuidados e minha prima Dora ficava a maior parte do tempo com ela. Naquele sábado ela iria ao cinema com os filhos e eu ficaria por lá. Assim que cheguei reparei que Tia Lucinha voltara a pintar os cabelos, o que era um bom sinal. Abraços dados fomos à cozinha. O cheiro fresco do café preenchia as ausências e essa foi a primeira coisa. Ela me perguntara se eu havia reencontrado meu tio. Embora ele não a tenha deixado desprovida de recursos, evitou qualquer contato e ela desconfiava das minhas negativas. Ele e a enfermeira Josie se apaixonaram e deixaram minha tia depois de dez anos em coma e sem perspectiva. Quando as coisas do coração se confrontam com as de nossa humanidade, qualquer julgamento pode ser injusto.

– É uma dor muito grande essa que eu sinto querido, é uma ausência sem fim.
– Mas tia, agora é uma outra etapa da vida. Seus netos estão crescendo e você tem um milhão de coisas novas para aprender. Esquece o tio, ele ficou ao seu lado por muitos anos.
– Mas eu não tô falando dele, é do Costelinha. Ah! Eu adorava aquele cachorro. Você lembra que demos o nome dele por causa do Doug, do desenho? Numa hora dessa ele estaria aqui querendo ganhar alguma coisa.
– Não tenho dúvida. A senhora voltou a cozinhar?
– Mais ou menos, tô voltando aos poucos. Vamos comer aquele bolinho de chuva hoje. Meu querido, me ajude a entender algumas coisas. Eu fico lendo e ouvindo de tudo. Às vezes fico triste, outras preocupada, outras enraivecida e umas eu não tenho a menor ideia do que pensar. Soube que o David Bowie morreu e o Bob Dylan ganhou o prêmio Nobel. Fiquei triste, sempre gostei do Bowie, mesmo quando ele surtava, marcou uma época boa da minha vida. Já o Dylan eu gostava mais das posições políticas que das músicas. Pega 01 ovo lá na geladeira.
– E que tem te dado tanta raiva?
– Não preciso nem falar, né? Não consigo entender a lógica das coisas. Por que que o ministro da Cultura entregou o cargo? Me parecia um sujeito simpático.
– Ele entregou porque, segundo ele, o Geddel ministro do Temer, havia ligado para que ele interferisse na liberação de uma licença de construção de um prédio em Salvador, que ele tinha comprado um andar. Coisinha assim de R$ 4 milhões de reais.
– Mas o Temer então tinha que demitir o Geddel, certo?
– Seria o correto, mas ele tentou abafar e aí piorou tudo, porque ele ligou pro Calero e esse conteúdo ficou estranho. Não se sabe ao certo se ele pediu para maneirar ou para liberar a licença. Mas, a senhora sabe como são as coisas por aqui, né? Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. No fim ele saiu. Foi o 5º ministro. Desse jeito ele vai bater o recorde do FHC de 95 ministros em 96 meses de governo.
– E essa história da Dívida? Não está certo controlar os gastos? Me explica por que tem tanta gente contra essa tal de PEC? Ah! Peneire prá mim 4 colheres de farinha de trigo. Tá aí no armário atrás de você.
– Por que peneirar?
– Minha avó fazia assim e falava que os pedreiros peneiravam a areia por que não a farinha?
– Então tia, essa história tá meio estranha porque eles dizem que tem que controlar os gastos e querem colocar isso na Constituição.
– Mas aí ninguém vai poder fazer nada depois.
– Exato. Estando na Constituição eu não posso, por exemplo destinar mais recursos para a Saúde além daqueles previstos na PEC.
-Então a saúde não vai melhorar.
-Bingo e a Educação também.
-Mas eles dizem que vão reajustar todo ano de acordo com a inflação.
-É, mas a população cresce e os gastos não. O resultado vai ser a diminuição dos gastos por pessoa. Então, daqui um tempo o gasto que se tinha com um aluno vai diminuir porque terão mais alunos.
-Mas meu querido, isso não faz sentido. Mas o governo não tá fazendo uma reforma no ensino médio e as crianças vão ficar mais tempo na escola? Da onde vai sair o dinheiro para isso?
-Entendeu porque a senhora não tá entendendo?
-Mas da onde vai tirar dinheiro para pagar essa dívida? Peneirou. Ótimo. Pega meio copo de leite e 4 colheres de açúcar e joga aqui na tigela.
-Olha, o governo não cobra sua dívida. Tem tanta gente que deve para o governo e não paga que daria aproximadamente 5 vezes o que eles estão propondo de economia. Dava também para mudar a forma de cobrança dos impostos. Aqui os ricos pagam menos impostos que os pobres. É uma injustiça sem tamanho e o Congresso representa essa turma. A senhora não viu o Deputado Marchezelli do PTB de São Paulo falando que pobre que não tem dinheiro não pode estudar e que os filhos dele vão estudar?
-Vi, mas achei que era um quadro humorístico. Pensei que fosse um personagem da Escolinha do Professor Raimundo. Não era?
-Não. Era um latifundiário paulista, mas agora eles se chamam de ruralistas. É mais chic.
-Esse Congresso também me deixa confusa. Eu fiquei uma dúzia de anos apagada e parece que são os mesmos. De alguns eu lembro, mas outros parecem filhos, netos. O que aconteceu? Me fale enquanto eu vou misturando tudo aqui até ficar uma massa bem lisinha.
-É isso mesmo tia, além de aprovarem essas maldades, eles continuam uma tradição que a nova Constituição não conseguiu eliminar. Tem deputado que é da 5ª geração do José Bonifácio. O presidente da Câmara é filho do César Maia, ex-governador do Rio. Aliás essa família Maia tem um monte de deputados, prefeitos pelo Brasil afora. Por aí tem Cabral, Landin, Bacelar, Abreu e mais um monte. Ninguém larga o osso.
– Então, até aquele Bolsonaro tem parentes espalhados na Câmara e em outros lugares. Esse cara não se toca. A ditadura acabou com o Brasil e o sujeito ainda tem o despaltério de chamar todo mundo de imbecil.
– A gente vai ter que conversar muito sobre isso. Talvez a gente tenha mesmo muitos imbecis entre nós. Tem muita gente que não tem paciência ou condição pra discutir as coisas e acha que a violência é o caminho mais rápido. É uma pena, mas existe.
– Mas parece que não é só por aqui. E aquele Trump? Olha só, agora a massa tá pronta. O ponto é quando sai da colher e forma essa bolota no óleo quente. Viu? Vai me ajudando aqui com a fritura que eu vou pegar o açúcar de confeiteiro para jogar por cima.
– Tia, se eu for falar do Trump agora e fritar vou explodir tudo.
– Mas não me esqueci da história dos 7×0. Pode tratando de se preparar.
Passamos horas nos empanturrando de café com bolinhos, relembrando umas histórias quentinhas, conversamos sobre os planos que ela começava a fazer. O sábado e a chuva se foram. Na saída ela me abraçou, segurou o celular e tirou sua primeira selfie.

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