Vida e morte em tempos de medo

Por João Augusto Neves 

Para se compreender o mundo devemos sentir/apreciar a arte. Por isso, proponho a escuta do álbum MM3 do trio Metá Metá.

Fixemos o olhar na capa do disco, ela prediz a intensidade das canções produzidas por Thiago França, Kiko Dinucci e Juçara Marçal. Neste espaço nos deparamos com um rosto cujo semblante remete ao medo. A face desenhada com traços fortes e com movimentos ondulares indicam tempestuosidades. Os olhos abertos apontam para o distante incerto. O fundo amarelo mostarda reafirma o contexto de cores pouco alegres. São estas as emoções que dominam a contemporaneidade e que ganham formas estéticas no disco MM3.

Vamos a terceira música do disco. Composição de Kiko Dinucci e Rodrigo Ramos. Voz de Juçara Marçal.

O ambiente sonoro é construído lentamente pelas notas metálicas da guitarra, seguida pelos prenúncios da bateria e do sax. Essa construção musical nos insere em um ambiente calmo em que “quatro bacias de barro cercavam o quarto onde iria nascer menina tardia dos guias de luz”. Juçara Marçal, após anunciar o parto, avisa, em um tom mais agressivo (?) e com o aumento da intensidade musical, que “a imagem do amor não é para qualquer um”, pois “Fere os olhos desleais [e] impele os imortais”. O anúncio é feito em um ambiente sonoro “caótico” com subidas de altura e variações melódicas que identificam um contexto formado pela hibridez de sentimentos [carne, terra, vísceras]. A canção assume o ruído e a instabilidade. A ansiedade, o sofrimento, a dor, o medo e o desespero preenchem o espaço sonoro sensível e a “consternação no semblante servil da parteira” reafirma essas emoções quando a criança vem à mão. E da “cascata [que] fluía envolvendo a bacia de barro no chão” nascia “uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação.”

Quando o quadro do parto é ilustrado pela segunda vez – isso ocorre no segundo movimento da canção – a dimensão da dor se expõem com mais ênfase. Os movimentos de contração, reação e entrega de si (ilustrados com os sons do mar/vento ao fundo da canção, ver 3’12’’) são sutis, como indicava o início da canção, mas no instante seguinte tal sutileza se corroê frente as forças que exigem o parto. Bateria, guitarra e sax são violentos, com ataques e performance (in)tensa. Enquanto os instrumentos remontam a angustiante cena daquele nascimento, os movimentos vocálicos, as quebras de tons, as desafinações e variações de intenção na voz de Juçara Marçal mostram o belo e medonho caos que envolvem o nascer.

Em poucas palavras interpreto a canção enquanto uma produção estética que traz à tona as conturbações político-sociais que vivemos na contemporaneidade. Ela apresenta o medo presente e o desconforto das incertezas do vindouro. Os ruídos, gritos e gemidos nesta performance musical são fruto do cotidiano de luta nas ruas que forjam uma “beleza disforme”, com muitos rostos, muitos nomes e sem moderação.

Vale dizer, no entanto, que MM3 não é tingido apenas pela angustia, pois se acompanharmos o discurso do disco perceberemos que após “a imagem do amor” a canção seguinte se forma a partir de uma reza que pede para que “Mano Légua nos ensine a caminhar”.

Eh! Mano Légua

Me ensina a caminhar

Eh! Mano Légua

Me ensina a caminhar

Tá na rua, tem cachaça

Já subiu, voltou

Eita!

Tá na porta, na janela

Sentinela do lugar

Se o sentimento de medo consome nossos dias e nossas noites, o Metá Metá nos indica, contrariando os dispositivos que preferem a ignorância e a negação dessas pulsões, as formas para que saibamos senti-lo e tocá-lo para engendrarmos novas subjetividades.

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.

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