Por João Augusto Neves Pires
Entre os golpes da vida, ouçamos e aprendamos com a sonoridade da cultura popular
No salão de espetáculos do Casarão, Alessandra e Caçapa se posicionaram no canto esquerdo, onde a iluminação, em comunhão com o rincão da sala, lhes concediam total atenção. Compunha o palco, além de duas cadeiras rústicas – provavelmente emprestadas pela mobília do antigo Casarão –, os instrumentos que fizeram o ambiente sonoro do espetáculo. A presença do tambor, de chocalhos, do caxixi, do pandeiro, da guitarra de 12 cordas e da viola, madeiras e metais de vida-morte, nos colocava diante dos traços de nossa cultura e nos instigava a pensar no híbrido sonoro das culturas populares brasileiras/afro-indígenas. Desse ambiente, os cancioneiros nos convidavam a viajar pelo sertão, pela Zona da Mata e pelo litoral Nordestino. Quando nos dávamos conta chegávamos as cidades, as vilas pesqueiras e aos povoados que pulsam resistências milenares.
Nesse ínterim, as batidas do coco, as rodas de ciranda, os rituais de candomblé e as forças do maracatu tomavam conta do salão. A performance ritual se concretizava diante de nossos olhos e a cada música, no “estreito espaço entre carne e vísceras”, abríamos “os olhos e vimos do que somos feitos” (Alessandra Leão). Submersos em uma longa empreitada investigativa sobre práticas populares e os sujeitos que formulam essas subjetividades, Caçapa e Alessandra pinçam sons, linguagens e gestos desse universo para acalentar corações. E avisam
Não vá se perder com tanta estrada
Não se pode esquecer do objetivo
Não há laço maior que o afetivo
Nem amparo melhor que a madrugada
(Boa Hora – Alessandra Leão)
Sabendo que nossas memórias movem-se no compasso de nossos sentimentos, Caçapa e Alessandra, entre tragadas e suspiros, nos desafiava a buscar “o aço” que existe/resiste.
EP Aço – Alessandra Leão.
É interessante notar que ambos são parte de um movimento musical, melhor dizendo, participam de encontros afetivos-musicais, que vem tomando nossos ouvidos nesse segundo decênio do século XX. Falo de Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Siba, Mariana Aydar, Rafa Barreto, Mestre Nico, Tulipa Ruiz e muitos outros artistas escondidos nos interiores dos diferentes brasis. Daqueles que me lembrei o nome – memória fresca devida a atenção e conhecimento de seus respectivos trabalhos – somos presenteados por um rico trabalho de experimentação sonora e por provocações estéticas, que, por isso, torna-os protagonistas da produção de outras subjetividades políticas e afetivas.
Nessa música(ação) que Caçapa e Alessandra Leão se inserem. Pesquisas, experimentações, encontros, afetos e sons. E, a partir disso, eles nos lembram que se os tambores ainda soam deve-se as mulheres e homens que não se curvaram frente as adversidades da vida. Na seca, na peste, na fome e nas violências do cotidiano rural e urbano o povo grita, produz sons, timbres e melodias que narram as belezas e feiuras da sobrevivência.
João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.