Por Luís Fernando Praga
Bem, aconteceu. Foi golpe e continua sendo golpe.
É irônico que as regras “democráticas” atribuam mais poderes às elites política (da qual já não distingo o judiciário) e econômica, que ao próprio povo. É irônico que o julgamento de uma presidenta da república (se você parou de ler no “presidentA”, a seleção está só começando) torne-se outra formalidade paga com dinheiro público, plenário vazio, a defesa cheia de argumentos que de nada servem… e a acusação, sem argumento algum: basta culpá-la, é muito conveniente, há muito foi combinado e o gran finale era mais que previsível.
Parece ironia que parte do povo ainda se dê ao masoquismo de defender o interesse dessas elites descaradas. Parece ironia que eu tenha tantos amigos crendo que o retrocesso representado pelo golpe seja benéfico ao País, felizes com essa “lição” que eles deram aos pobres, aos direitos humanos e às esquerdas.
Afastei-me, neste período, de pessoas queridas, gente bonita, boa e inteligente, pessoas com as quais, mea culpa, não consegui manter a relação que existia no pré golpe. Sigo sem ódio de ninguém. Sinto que criei expectativas erradas sobre pessoas, instituições e sobre mim. O que sinto é decepção. O sentimento é meu e não há responsável por ele que não seja eu, mas posso tentar fazer o melhor possível a partir desta decepção, pois continuo repleto de esperanças.
O momento é de mudança e a vida continua além do golpe.
Toda mudança é traumática, esta é muito triste, mas não posso ficar infeliz pra sempre só por causa de um Temer, de uma mídia vendida, das bancadas evangélica, ruralista e da bala, da direita fascista ou dos meus amigos que possuem visão política, noção de justiça, de valores, de sucesso, de democracia e de compaixão diferentes das minhas.
Não quero discutir o de sempre com quem já tem as suas certezas. Não posso convencer ninguém, não quero transformar meus amigos, mas, se o momento pede mudanças e é só a mim que posso transformar, não desejo mais me aproximar ou estreitar afinidades com quem se empenha em apoiar propostas retrógradas de líderes preconceituosos. Não quero nutrir grande afinidade com quem se vangloria de oprimir a liberdade alheia, não quero amigos xerifes, que, hipócritas, decidem enforcar gente mais inocente e menos perigosa que eles próprios. Não estreitarei laços com quem se orgulha de pensar conforme o rebanho ou sinta medo de questionamentos profundos. Não quero ser amiguinho de quem desconsidera o sofrimento dos que mais sofrem e não me desgastarei a considerar argumentos carregados de preconceitos e baseados no ódio.
Meu afastamento é também das piadas machistas, racistas, sexistas e do humor desumano que não percebe o sofrimento que causa. Afasto-me do descaso para com a cultura e a educação, me afasto do economês da rede globo, sinceramente ele nunca me acrescentou em nada, e do “jornalismo” de rabo preso que se prostitui e planta, na sociedade, ainda mais ignorância.
A vida muda tão constantemente e é tão linda que, neste período de decepções, também descobri pessoas admiráveis e cheias de afinidades.
Sofremos pelo sofrimento humano, pelos carentes de recursos básicos, pelos carentes de direitos e pelos filhos dos quais essa tal democracia sente nojo e mantém excluídos. Sofremos pelos pobres que sentem fome de educação, de reconhecimento, de dignidade e de comida.
Nós sofremos por ver gente rica e estudada, sem a menor educação e sem noção de cidadania. Sofremos pelos pretos e pobres que superlotam presídios. Sofremos com os brancos multimilionários que desviam dinheiro da merenda e da saúde e sofremos ao ver juízes brancos e ricos que passam suas vidas condenando pretos e pobres. Sofremos por haver gente de todas as cores e classes sociais que culpam os pretos, os pobres, as minorias oprimidas e as esquerdas pelos problemas do País e do mundo. Sofremos pela sociedade que age como se tudo tivesse que ser assim, banaliza o sofrimento e se faz cega às graves injúrias sofridas por seres humanos que ela mesma decidiu que seriam menos humanos logo ao nascimento. Sofremos pelas guerras, pela destruição da natureza e pela exploração animal, mas temos a noção de que o ser humano é um animal e de que muitos vivemos em condições mais precárias que a de porcos e cães.
Sofremos com a injustiça, por isso não queremos gastar nossas vidas com caçadas e perseguições pessoais que nos estacionam na hipocrisia e são historicamente injustas.
É ao lado destas pessoas que espero construir meu futuro, pois, apesar de sofrermos dos mesmos sofrimentos, a esperança nos conduz e renova nossas forças, acreditamos na felicidade e a desejamos para todos.
Agrada-nos que pessoas pobres sejam incluídas, que possam estudar, ter um lar, frequentar cinemas, teatros e fazer turismo até de avião. Respeitamos a cultura e os artistas, gostamos de cirandas, de mãos dadas, de rir, de cantar, de comer e beber juntos. Não apoiamos líderes que queiram elitizar o prazer de viver. Não exigimos regalias enquanto houver gente sem direitos, escravizada, passando frio e fome e não batemos panelas, de barriga cheia, pedindo mais privações aos pobres.
Somos felizes pelo que somos capazes de enxergar além deste presente ultrapassado, cheio de ódio, ignorância e preconceitos, que muitos acham o máximo e desejam conservar.
Nós amamos as pessoas e acreditamos na transformação pelo amor. Enxergamos o mundo que virá depois da curva da mudança e sabemos que nada se muda entregando as rédeas de nossas vidas ao conservadorismo ou a gente conservadora.
Acreditamos que essa gente desprezada, os pobres, os excluídos e marginalizados, essa gente que não pode se mostrar como eu posso, essa multidão humana feita de vidas, tão vidas quanto as de banqueiros e políticos, essa gente que jamais teve a liberdade de explorar seu próprio potencial, guarda os tesouros que iluminarão os novos rumos de toda a humanidade.
Foram eles, os pobres, a ralé, os explorados e os escravos, que construíram as pirâmides para os faraós, foi aquela multidão humana de anônimos que construiu e constrói o mundo como conhecemos, a mando dos senhores do mundo.
Somos todos como eles, construímos e mantemos a fortuna de banqueiros, das grandes corporações e de políticos. A história atesta que somos capazes de construir. A elite depende da nossa força de trabalho e teme a nossa organização. Nós não dependemos das elites, dependemos da nossa organização. No mundo justo não cabem elites, o ser humano é um só e logo ele compreenderá que é mais satisfatório, é mais feliz, ser justo que ser rico.
Acreditamos na alforria de todos os humanos e num mundo sem senhores, sem carrascos e sem capatazes. A justiça estará no respeito à vida e às individualidades, não precisaremos de poderosos nos dizendo o que é justo. O amor será o diferencial e nos guiará para fora desse passado sangrento no qual derrapamos até o presente momento.
O estopim para a mudança foi aceso, o golpe (conforme o script) está dado, já o assimilamos, a vida continua e nossa luta também.
Nossa luta será diferente e grandiosa, pois não será contra ninguém, será pela defesa do mundo livre e tolerante que somos capazes de vislumbrar.
Em nossa luta estará todo o descontentamento para com esta sociedade que nos empurraram. Em nossa luta estará a coragem da insubordinação a líderes artificiais e tiranos, haverá a ruptura com o passado, com os dogmas e convenções estagnantes, com o consumismo, com a escravidão e com a guerra.
Estou certo de que, por mais que as regras democráticas estejam apodrecendo a olhos vistos, ninguém, em verdade, tem mais poder que um povo unido. Acredito que sejamos capazes, juntos, de quebrar, definitivamente, as engrenagens deste sistema que nos ilude e escraviza a todos. Nossos atos serão pela libertação humana e pela sustentabilidade do planeta. Em nosso mundo, visaremos ao mundo, não ao poder ou ao lucro.
Com tamanha beleza pela frente, com o exemplo que poderemos dar, gastar nosso tempo discutindo com gente que apoia o golpe só iria apequenar a nossa luta.