Por José Roberto Cabrera
Há uns anos ela caiu no banheiro, bateu a cabeça e entrou em coma. Ficou uma dúzia de anos apagada. Perdeu o viço, assim como o marido que sumiu, coincidentemente no mesmo dia em que a enfermeira pediu demissão.
As visitas que eram regulares nos primeiros dias pós acidente tornaram-se esparsas. Os filhos tocaram suas vidas e seus netos cresceram.
Numa quarta-feira pálida, lá pela hora do almoço, tocou o telefone e minha prima efusiva e confusa, atropelando as palavras, gritava que tia Lucinha tinha acordado.
–Sabe, ainda tá meio confusa, mas acordou. Os médicos estão em cima dela, precisam ajustar a alimentação, estão fazendo exames. Dá a impressão que ela está cansada, mas tá perguntando sobre todo mundo, inclusive sobre meu pai. Preciso de ajuda. Não sei o que fazer, você pode vir?
Respondi prontamente que sim, mas que só poderia ser na sexta-feira. Estava emocionado e apreensivo. Quem iria me receber? Ela havia sido uma entusiasta do processo de democratização. Acompanhara tudo de perto. Não fora militante na juventude, mas sempre fazia referência aos amigos desaparecidos e das angústias de seus familiares. Quando caiu ainda nutria grandes expectativas com a primeira eleição de Lula.
Cheguei por volta das 10 horas naquela pequena vila onde ela morava. Conhecia bem o lugar que dava a impressão de ser muito maior quando lá passava minhas férias. Entrei e ela estranhou meus cabelos grisalhos, mas deu o mesmo calor no abraço fraco de agora. Depois do choro e do café, que nunca faltava, ela desandou a perguntar sobre coisas que não entendia, como o smartphone e o tal do wi-fi. De repente, a conversa tomou o seguinte rumo:
– Olha eu nem lembro muito dessa Dilma, mas se ela se reelegeu deve ser porque ela teve apoio da maioria, não foi?
– Sim tia, foi apertado mas foram 54 milhões de votos.
– Mas por que o impeachment?
– Sabe, tá previsto na constituição tia e foi por isso que ela foi afastada.
–Tá bom, mas qual foi o crime cometido? Eu me lembro que com o Collor tinha aquela história do PC Farias e teve uma CPI para investigar.
– Sim, mas dessa vez não houve CPI
– Ah, então teve a ver com essa história da Petrobras e da tal Operação Lava-Jato?
– Mas como a senhora sabe disso?
– Eu comecei a ouvir umas coisas estranhas há uns dias e desde de ontem eu tenho assistido TV.
– Não, não foi a investigação da Lava-Jato, mas sim a aprovação de créditos suplementares que ela assinou.
–Ah!, então isso é crime?
– Era, mas no dia seguinte deixou de ser.
–Como? Então se era, quer dizer que todos os que cometeram esse tipo de crime foram punidos?
– Bem, não.
–Mas como não?
–Tia, acontece que os governadores nunca foram acusados de nada, inclusive o relator do processo contra ela no senado, quando governador tinha feito o mesmo que ela.
–Espera aí, então como a acusação formulou os argumentos contra ela? Foram levados em consideração os pareceres técnicos que avaliaram o processo?
–É tia…não. Num determinado momento a advogada que ofereceu a denúncia disse que não era por aquile crime que ela estava sendo julgada e sim por corrupção.
–Ah, entendi, então quer dizer que existiam provas de corrupção contra ela.
–Então, não. Havia provas contra diversos senadores e deputados, mas contra ela não e olha que o Sérgio Moro, o juiz de quem você ouviu falar mas que agora desapareceu, bem que tentou. Até liberou áudios ilegais para prejudicar a indicação do Lula como ministro da Dilma.
–Mas o Lula estava sendo investigado?
–Claro.
–Ah, entendo, imagino que alguém investigado não pode ser Ministro de Estado, certo?
–Bem, depende, o Temer indicou sete ministros que estão em investigação.
–Ai, agora não entendi nada.
–Que bom, pelo menos nisso estamos juntos. Ninguém entendeu.
–Espera aí, não é minha cabeça que está fraca, é? Explique, quero saber melhor do impeachment da Dilma, os técnicos deste processo tinham material suficiente para criminaliza-la?
–Bem, eles disseram que não, que não existiam evidências quanto ao crime de responsabilidade.
–Deixa eu ver se entendi: Não havia crime, mas mesmo assim ela foi afastada?
–Sim, entendeu?
–Não, mas vamos tentar mais uma vez.
–Vamos.
–Os que foram às ruas protestar contra a Dilma foram porque tinham provas contra ela?
–Não.
–Então, foram porque ela pôs em prática um plano de governo diferente daquele que ela apresentou na Campanha?
–Não.
–Ah já sei, eles foram exigir mais investimentos nas políticas públicas?
-Também não.
–Mas como?
–Veja, alguns foram pedir o fim do programa Mais Médicos e o fim do Bolsa Família.
–Claro, o Programa não devia estar funcionando e o Bolsa Família não deu resultados, certo?
–Não, eles produziram resultados, houve redução da mortalidade infantil e o Bolsa Família foi copiado até pela Prefeitura de Nova York.
–Então devia ser o protesto de pessoas que não tinham acesso a nada do Estado?
–Não, algumas das mulheres que estavam lá recebem pensão vitalícia por serem filhas de militares, mas se opõem ao Bolsa Família de R$ 120,00.
–Mas então elas ganham menos que isso? Como pode?
-Não, elas reclamam que o Bolsa Família desestimula as pessoas a procurarem melhorar na vida. Acho até que elas afirmam isso por experiência própria, afinal algumas ganham 12, 13 mil reais por mês e elas não conseguem se estimular por nada.
–Mas veja essas pessoas devem se sentir tão incomodadas com as denúncias de corrupção e por isso elas devem estar permanentemente em vigília contra todos os acusados, certo?
–Bem, não é bem assim. Muitos dos acusados participam destas manifestações.
-A Fiesp, eu me lembro, apoiou o golpe de 64 e agora, me explique, ela estava apoiando a luta contra a corrupção?
-Não tia, não é bem assim. A Fiesp e outros empresários puseram dinheiro para mobilizar uma turma contra a Dilma, mas não tinha nada a ver com luta contra a corrupção, tanto é que o maior devedor do país é diretor da entidade. O cara sozinho deve 6,9 bilhões de reais aos cofres públicos, mas reclama dos programas sociais do governo.
–O quê? Mas e a polícia não faz nada?
–Bem, estes manifestantes tiram selfies com os policiais.
–Selfies?
– Depois te explico.
–Quer dizer que sempre que tem manifestação a polícia é bem recebida e confraterniza com as pessoas?
–Não, só em alguns casos. Em outros eles são violentos e não respeitam ninguém.
–Mas como saber o comportamento deles?
–É simples, quando é para reclamar da corrupção e ser contra o governo da Dilma, aqui em São Paulo, o governador até libera o metrô, mas quando é para criticar o golpe e pedir a saída do Temer ele libera o chicote.
–Mas, peraí, eu me lembro que na luta contra a ditadura esse pessoal do MDB, que depois virou PMDB e uns foram fundar o PSDB, defendiam a liberdade e os direitos. Como pode isso?
–Pois é, mas eles mudaram de lado.
–Daqui a pouco você vai me dizer que tem gente que fala bem da ditadura?
-Então, tem, mas prefiro não falar sobre isso hoje. Preciso de um pouco mais de tempo para entender o que acontece com eles, mas acho que é tudo gente preguiçosa que acha melhor que os outros tomem as decisões por eles.
–Mas meu filho, será que eles não enxergam que nos anos 70 o que mais havia era corrupção, violência, desrespeito e desvios, a diferença é que não havia tantas imagens, internet, liberdade de imprensa e quem se metia a besta de denunciar desaparecia. Essa nossa conversa tá ficando difícil pra mim, quando eu entendo uma coisa aparece outra e bagunça tudo.
–E o pessoal do PT no Congresso e no Senado não defenderam a Dilma, cadê o Zé Dirceu e o Genoíno?
–Bem tia, esses tão presos e a principal defensora da Dilma no Congresso foi a Kátia Abreu, latifundiária, da Confederação Nacional da Agricultura.
–Ah não, preciso parar com essa conversa. Minha cabeça está confusa. Vamos mudar de assunto. Vamos falar de futebol. Como o Brasil perdeu de 7 para a Alemanha?