Por Alessandra Caneppele
Freud foi e é até hoje muito criticado por sua afirmação genérica de que os homens seriam ativos e as mulheres, passivas. Deixando de lado os problemas dessa afirmação, usemos essa fórmula para começar a pensar o estupro. Do ponto de vista estritamente anatômico, mulheres podem ser estupradas por homens; mas elas não podem estuprá-los (ou violentá-los sexualmente).
Aqui “poder” significa ter a capacidade anatômica – e não ter o direito ou permissão para fazê-lo: ou seja, anatomicamente, um indivíduo do sexo biológico masculino pode usar seu órgão genital para fazer sexo com outros indivíduos sem o consentimento desses, apenas com o seu querer; já um indivíduo do sexo feminino poderia violentar outros de inúmeras maneiras, mas não pode realizar um ato sexual com um órgão sexual masculino alheio sem que esse “queira” e consinta com o ato. Ao homem basta anatomicamente o seu próprio querer para que o ato em si ocorra – à revelia da mulher atada, inconsciente, subjugada à força, desacordada, bêbada, drogada ou apenas submissa.
A anatomia coloca homens e mulheres, enquanto apenas seres biológicos, em uma desigualdade na qual o macho tem a prerrogativa de um ato sexual. Não estamos falando do jogo sexual entre dois consentidos – onde não há mais passivo e ativo, nem limites entre o que é próprio ao comportamento sexual masculino ou feminino. Nem também de uma desigualdade de papéis sociais. Trata-se aqui apenas do que é o limite da estrutura anatômica da relação sexual.
Aí, uma diferença entre os sexos faz dos machos detentores de uma ação sexual vedada às mulheres – e a evidência dessa diferença é a realidade dolorosa do estupro. A polêmica afirmação freudiana ajuda-nos a compreender como uma sociedade compartilhada entre homens e mulheres de modo equânime, na qual o estupro é banido, repousa em uma renúncia masculina ao seu destino anatômico funcionando ativamente sozinho. Assim fazendo, o masculino abre em si espaço para um encontro com o feminino: ele passa a ser também passivo, ao esperar o consentimento do outro.
Por que essa reflexão é importante? Porque ela nos permite ampliar a discussão sobre o que é educar um menino para que ele não estupre! Há dois modos de educar: vigiando e punindo ou ensinando o menino a não reconhecer o estupro como uma opção sexual válida. Pelo segundo modo, o homem não estuprará não porque está sob vigilância, mas porque escolheu uma outra sexualidade, feita na diferença a dois. A “cultura” do estupro revela uma sociedade ainda refém da prerrogativa masculina da violência sexual ativa. Como sociedade, temos então ainda um longo caminho a trilhar! E qual caminho escolheremos? Queremos fazer dos meninos homens que se envergonhem de ser potencialmente estupradores ou homens felizes por escolher não o ser? Acreditamos que apenas o controle policial pode cercear a diferença sexual masculina irremediavelmente violenta e contrária à mulher? Ou acreditamos que o masculino pode sobreviver reformulado, pela renúncia, ao lado da mulher? Queremos educação ou polícia? E se queremos educação, de qual tipo? Subjacente a todas essas perguntas, encontra-se, no limite, a questão sobre o valor que daremos hoje à diferença sexual – pois talvez não queiramos educar mais nenhum menino, pois talvez queiramos abolir qualquer representação da diferença entre sexos em nossa cultura… É isso que queremos? Questão polêmica da qual não podemos nos furtar, se queremos pensar a sociedade que construímos!
E aqui chegamos ao outro lado dessa polêmica, tão polêmico quanto – aquele do contra discurso que tenta desmoralizar e culpar a vítima: “ela estava pedindo”; “ela merecia”; “ela procurou”; “ela não prestava mesmo”. Usar esse argumento para culpar a vítima e inocentar os praticantes do estupro é pura má fé e injustificável! É o tipo do argumento falacioso que deve ser mantido longe de qualquer julgamento. Mas esse contra discurso traz consigo uma discussão fundamental: aquela do uso que a mulher pode fazer de seu próprio corpo. As mulheres, com razão, criticam o policiamento puritano de sua liberdade, dizendo que seus comportamentos não podem ser confundidos com práticas de sedução. Verdade: passear na rua é um direito de ir e vir e não um desejo de cortejo sexual. Contudo, para além desse ideal assexual de liberdade, o que a menina vítima do estupro coletivo nos conta sobre o tipo de liberdade no uso do corpo próprio usufruída hoje pelas meninas brasileiras?
Há muito tempo, Frineia ficou famosa ao ser levada a julgamento no Areópago, acusada pela cidade de usar seu belo corpo de uma forma sedutora demais. Fontes falam sobre a oratória perfeita de seu defensor e suposto amante, Hipérides, mas também de como ela por fim conquistou a absolvição apenas através de manobras sedutoras dirigidas ao júri – entre as quais, além das lágrimas, figura a exposição de seu seio ou de todo o seu corpo nu (há versões divergentes). Frineia tinha absoluto controle sobre o efeito de seu corpo sobre os outros – ela sabia construir corporalmente sua retórica! Para fazê-lo, ela conhecia muito bem seus interlocutores: a elite masculina de uma Atenas já decadente. E hoje, podemos dizer o mesmo de nossas meninas, ou daquela coletivamente estuprada? Elas estão no controle da sua própria exposição? Sabem usá-la, como Frineia, para se defender, ou apenas se expõem indefesas, para serem a seguir hostilizadas, vitimadas, estupradas e, por fim, culpadas?
Não basta argumentar que o júri masculino grego era mais esclarecido. É Frineia, como exemplo de uma certa relação da mulher com seu corpo perante o masculino, que nos interessa, enquanto antítese da vítima vulnerável e desprotegida do estupro coletivo.
Atento ao que quer uma mulher, Lacan relerá a afirmação freudiana da oposição entre passivo e ativo, invertendo-a: para ele, na realidade da linguagem amorosa, justamente a mulher é a ativa e o homem, passivo. Para representar alegoricamente sua afirmação, Lacan descreve a corte amorosa como a cena de uma caçada: a fêmea, tal qual a presa, passeia de cá para lá, se expondo ativamente aos olhos do caçador que, passivo, espreita imóvel atrás de uma moita. De fato, diz Lacan, no limite é a caça quem caça o caçador! Frineia é um exemplo mítico do domínio feminino ativo dessa linguagem sexual.
Nesse campo, a sociedade brasileira vive um paradoxo exasperante. Somos um país no qual a sexualidade feminina está o tempo todo à flor da pele, nas televisões e nas músicas, nas roupas e nas novelas, e que, ao mesmo tempo, apresenta um dos mais altos índices de gravidez indesejada na infância e adolescência! Ou seja, aqui as meninas crescem incentivadas a expor seus corpos e sendo expostas à sexualidade e à sensualidade generalizadas, mas, puritanamente, não somos capazes de dar a essas mesmas meninas uma educação sexual eficaz, que as faça efetivamente donas de seus corpos perante o corpo masculino. Usando a imagem de Lacan, incentivamos as meninas a desfilar, mas não a deixamos saber sobre os perigos da caça…. Ficamos esperando que eles desapareçam sozinhos? Mas, ocultados, os perigos não apenas se fortaleceriam? O conto de fadas sexualizado da infância feminina brasileira escreve não apenas o que serão as estatísticas nacionais alarmantes da gravidez na adolescência, mas também aquelas dos casos de estupro! Assim, somos incapazes de formar Frineias: plantamos meninas entregues incônscias a situações de perigo – quer o perigo seja a comum gravidez indesejada, quer seja o espetacular estupro coletivo – e colhemos mais tarde mulheres paralisadas pelo terror da violência real que salta dos becos da sexualidade, que insistimos em manter no escuro.
Apoderar-se do corpo próprio é saber que o usamos em um mundo feito de diferenças sexuais – mesmo que, do ponto de vista dos direitos sociais, batalhemos para que as desigualdades entre os sexos sejam ultrapassadas. Ignorar essa diferença, fazer de conta que ela não existe, torna esse mesmo corpo passivamente vulnerável ao que só poderá chegar então desse outro diferente como perigo e violência – a primeira prova disso é a gravidez indesejada. Infelizmente no Brasil, quando o assunto é sexo, seguimos a mentalidade do avestruz: enfiamos a cabeça no buraco, para fazer de conta que não há problema, e, ao mesmo tempo, empinamos para cima o traseiro nu, expondo-o. Antes de serem vítimas do estupro, as meninas já são vítimas da ignorância que lhes é imposta por uma certa deseducação sexual à brasileira.
Humanos pagam com o sacrifício de suas prerrogativas sexuais ilimitadas o direito a uma vida compartilhada entre gêneros diferentes em uma mesma sociedade. O triste ocorrido do estupro coletivo expõe o que nossa sociedade não está conseguindo realizar tanto do lado da educação dos meninos como daquele da educação das meninas: estamos sendo incapazes de ensinar a ambos que o exercício da sexualidade entre cidadãos sexualmente diferentes impõe sempre limites e nasce da responsabilidade tanto no uso do corpo próprio como também do corpo do outro. São os limites que aceitamos em nós mesmos que nos permitem respeitar e dar um lugar em nossas vidas para o outro diferente de nós, que poderá ser então parceiro em nossa sexualidade. Isso vale para todos os gêneros! Se não atentarmos para isso continuaremos alimentando os embriões tanto dos novos estupradores quanto das próximas vítimas. Difícil, mas é preciso avançar pela polêmica.
texto: alessandra caneppele
ilustração: flávio ribeiro de oliveira