Por Guilherme Boneto
Há alguns meses tive acesso a um artigo do escritor e dramaturgo Ismael Caneppele para o jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul, falando da degradação do município de Porto Alegre. Em certo momento do texto, Caneppele trata do tolhimento que as mulheres têm em relação à própria liberdade nas cidades brasileiras. Uma frase escrita por ele me marcou profundamente, e eu agora tomo a liberdade de repeti-la com frequência: “assusta olhar a cidade pelos olhos da mulher que caminha sozinha”.
Tenho refletido muito a esse respeito. Como será ter medo de caminhar sozinho pelas ruas e, de repente, topar com uma pessoa desconhecida e mal-intencionada? Já tivemos uma quantidade absurdamente grande de provas de que essas pessoas são muitas e estão por toda parte. Como será o temor de passar diante de um prédio que parece vazio, como será a sensação do assédio, dos gritos, do machismo em seu estado mais bruto e evidente? Nós, homens, não poderemos jamais afirmar.
Você perdeu o seu sossego quando veio a público o caso da garota estuprada por 33 homens? Eu também perdi, e diante de tantas notícias ruins que surgem todos os dias, é sintomático uma delas nos tirar o sono. Seria um alento constatar que os 33 estupradores que violentaram a jovem menor de idade sejam “monstros” ou “animais”. Não são. São pessoas comuns, com as quais cruzamos todos os dias pelas esquinas deste país moldado na injustiça, e é absurdamente assustador dar-se conta disso. Os criminosos que se envolveram no caso são homens como você e eu, que trabalham, estudam e declaram imposto de renda. O que todos têm em comum é a certeza da superioridade do homem sobre a mulher, não apenas moral, mas até mesmo sobre o poder de decidir o que fazer com o próprio corpo e com as próprias atitudes. Confesso que, antes da repercussão dessa violência vergonhosa que assombrou o Brasil, eu mesmo classificaria os estupradores com os nomes que citei acima, porque colocá-los numa categoria à parte é muito cômodo. É como se esses homens fossem uma raridade, uma exceção, uma aberração social que não se vê com facilidade por aí. A constatação de que são apenas homens cruéis e educados numa cultura machista, e que estes existem aos milhões no Brasil é muito assustadora. Justamente por isso, já passou da hora de encontrarmos alternativas para cortar as origens da violência sexual pela raiz.
O problema, lamentavelmente, é muito mais grave do que nós imaginamos. Um levantamento feito pela rede BBC reúne uma série de estudos que nos dizem, por exemplo, que 70% dos casos de estupro no Brasil são contra menores de idade, e em metade das ocorrências envolvendo menores, há casos de estupros anteriores com as mesmas vítimas. No ano de 2014 houve, no Brasil, um caso de estupro a cada onze minutos, o que totaliza algo em torno de 47,6 mil vítimas – e estima-se que se preste queixa em somente 30% a 35% dos casos, o que indica um número muito maior na realidade. 70% dos estupros são cometidos por alguém conhecido, como amigos, parentes ou namorados, e nada menos que 90% das brasileiras têm medo de ser vítimas de violência sexual. Para mais números aterradores, você pode acessar a matéria da BBC aqui.
Vi muita gente propondo pena de morte aos criminosos que estupraram a jovem garota, cuja vida provavelmente foi arruinada para sempre – a mesma pesquisa citada na matéria da BBC que linkei acima nos diz que “as consequências, em termos psicológicos para esses garotos e garotas são devastadoras, uma vez que o processo de formação da autoestima – que se dá exatamente nessa fase – estará comprometido, ocasionando inúmeras vicissitudes nos relacionamentos sociais desses indivíduos”, diz o levantamento do Ipea. Ninguém jamais será capaz de devolver a ela o que lhe foi roubado naquele dia, e como humanos que somos, repletos de emoções, só conseguimos desejar que a punição a essa gente seja carnal, exemplar, física, que sintam a mesma dor que impuseram a uma inocente. Mas não podemos pensar assim se quisermos atingir algum grau de civilização. Devemos lembrar que a República Federativa do Brasil possui um Código Penal a ser seguido, e este não prevê nem a pena de morte, nem a tortura. A punição deve ser dada como dita o texto da Lei brasileira, para que não retornemos à barbárie da qual, afinal de contas, não estamos tão distantes assim.
Só teremos alguma chance contra os números endêmicos da violência sexual quando mudarmos a maneira como educamos os nossos filhos. Conseguiremos por um fim à cultura do estupro quando começarmos a contar aos meninos que eles, ora, são exatamente iguais às meninas em tudo. Que eles podem e devem ajudar a família nas tarefas domésticas, que precisam aprender a cuidar das próprias casas para o futuro, que devem aprender a respeitar os outros independentemente de quaisquer características que venham a ter. Que não há absolutamente nada de errado em gostar de rosa, brincar de boneca e dançar balé, se for do desejo, e que quando iniciarem suas vidas sexuais, não há problema em não querer transar quando não houver vontade. Também podemos relembrar aos nossos filhos que desabar diante das adversidades também é uma característica comum, e que chorar de vez em quando não faz mal a ninguém, havendo ou não motivo – somos humanos e temos direito a sucumbir quando os ombros pesarem demais. Além disso, uma criança deve ser educada de modo a ter vários de seus desejos e expectativas frustrados, para não imaginar no futuro que a sociedade tem o dever de atendê-la sempre.
A punição para quem comete um crime tão hediondo como o estupro deve ocorrer, sem sombra de dúvida e com extrema urgência. Mas é necessário que a sociedade compreenda com urgência ainda maior que somente a educação poderá mudar a cultura do estupro, desde aquela que aprendemos em casa, passando pelo conteúdo que chega às crianças na escola. É claro que é preciso punir e até mesmo endurecer as penas previstas, mas somente a educação tem real poder de transformação. Enquanto isso não mudar, pode-se implantar qualquer tipo de sanção penal e o estupro continuará a ser uma ameaça diária e constante às nossas mulheres. O fim da violência sexual passa por mim e por você, e a mudança de atitude deve ser diária. É mais que hora de começar.