As escutas telefônicas e a interceptação das comunicações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente Dilma Rousseff, conduzidas pela Policia Federal e divulgadas com fins políticos pelo juiz Sérgio Moro em ação legalmente duvidosa, trazem à tona alguns pontos fundamentais para discussão. Ao menos três aspectos, intimamente relacionados, se destacam neste episódio. São eles: a propagação de dispositivos de vigilância; a segurança de dados e suas comunicações; e a democratização dos meios de comunicação.
Assistimos à possibilidade, cada vez mais ampliada e irrestrita, de coleta de dados e da disseminação crescente de dispositivos de vigilância. Redes sociais, smartphones, telefonia celular, navegação na Internet estão sendo utilizadas para a imposição de um Estado policial que monitora, principalmente, populações marginalizadas, ativistas e organizações sociais e que, agora, atingem também membros do próprio Estado. Cabe destacar as ações coordenadas de órgãos policiais e investigativos com empresas especializadas na prestação de serviços de segurança da informação. São inúmeros os relatos recentes de atividades que praticam a vigilância em massa da população, em detrimento de garantias individuais e direitos fundamentais das pessoas. A combinação entre as possibilidades quase irrestritas de monitoramento e uma frágil legislação de proteção de dados pessoais tornam qualquer ator social e o próprio exercício do livre pensar vulneráveis destruindo a fronteira fundamental entre manifestação pública de opinião e liberdade de pensamento.
Ainda que existam no Brasil leis para interceptação de comunicações e quebra de sigilo de informações, o caso nos parece mais um exemplo de abuso de poder, como tantos que temos acompanhado. Informações têm sido utilizadas sobretudo como elemento incriminador e de barganha, a ser manipulado judicial e midiaticamente, do que como prova efetiva de qualquer crime. No caso em pauta, a culpabilidade de investigados se dá pela espetacularização de supostas evidências, coletadas e manipuladas de forma obscura, que suportam hipóteses judicialmente frágeis, com interesse de promover a desestabilização das instituições democráticas. Preocupa, ainda, nesse caso, a crescente demanda de autonomia por parte de autoridades policiais e judiciárias bem como por parte de instâncias do próprio Ministério Público. Deve-se reiterar que a autonomia operacional não deve, de forma alguma, confundir-se com ausência de transparência, prestação de contas e controle democrático por integrantes não eleitos da Administração Pública, em conformidade à Constituição Federal e ao ordenamento jurídico brasileiro.
Muito distante de casos como o de Edward Snowden, que usou do vazamento de informações para a denúncia da infraestrutura estatal e corporativa de vigilância, o caso atual serve à chantagem política que ameaça o Estado de direito. No Brasil, recorrentes casos vitimam a liberdade de expressão e manifestação daqueles que denunciam, entre outros, o abuso policial e a manipulação dos grandes meios de comunicação.
Há 15 anos no poder, depois de ter sido comprovadamente espionado pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, o governo brasileiro não tomou iniciativas efetivas no sentido de garantir a segurança nem mesmo dos seus próprios dados e comunicações. Soma-se a isso a postura conivente com uma Lei Antiterrorismo sancionada ontem pela Presidente Dilma Rousseff, que afronta ainda mais as liberdades individuais, e ironicamente ameaça os movimentos populares que tentam sustentar os direitos democráticos deste mesmo governo.
A percepção da Internet enquanto fórum de debate público demorou a aparecer e tem sido pautada pelo acordo com megacorporações. A estas, que fazem uso comercial e político de nossos dados, têm sido confiados o relacionamento com a população e a comunicação oficial. O cenário atual pede — além do pleno respeito ao regime posto de proteção e promoção dos direitos dos usuários da Internet no pais — por políticas efetivas no sentido da democratização das comunicações com o incentivo a iniciativas autônomas e independentes. Somente uma comunicação popular e democrática, capaz de superar a extrema concentração da propriedade dos meios de comunicação, poderá fazer frente a episódios de evidente manipulação midiática. Urge a retomada do apoio a projetos de implementação de softwares livres nas esferas públicas; a adoção de padrões tecnológicos abertos e socialmente mais inclusivos na radiotransmissão digital; o fomento à infraestrutura pública para o acesso universal à Internet; o respeito à privacidade e à liberdade de expressão; o reconhecimento do espectro eletromagnético como um bem comum; e o incentivo ao aprendizado da comunicação criptografada e navegação anônima, aprimorando a segurança de máquinas, programas e dados.
A turbulência deste momento apenas reforça essas necessidades e evidencia a fragilidade da jovem democracia brasileira. Reiteramos, portanto, o respeito à soberania do voto e às liberdades individuais e coletivas. Esperamos que o momento difícil sirva para a construção de políticas públicas e realizações sociais que fortaleçam esses princípios que são garantias fundamentais para a democracia.
Adriano Belisário (MediaLab.UFRJ)
Bruno Cardoso (LAVITS e NECVU/UFRJ)
Bruno Ricardo Bioni (GPoPAI/USP)
Diego R. Canabarro (CEGOV/UFRGS)
Diego Vicentin (Unicamp)
Fernanda Bruno (LAVITS e MediaLab.UFRJ)
Henrique Parra (LAVITS e Depart. Ciencias Sociais-Unifesp)
Márcio Moretto Ribeiro (GPoPAI/USP)
Marta M. Kanashiro (LAVITS e Unicamp)
Paulo Lara (LAVITS, Unicamp e Goldsmith College)
Pablo Ortellado (GPoPAI/USP)
Rafael Evangelista (LAVITS e Unicamp)
Rodrigo Firmino ( LAVITS e PUCPR)
Vinicius W. O. Santos (LAVITS e GEICT/Unicamp)