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Lava jato de operário

Por Carlos Trigueiro

Ignácio despertou com a musiquinha do celular, foi ao banheiro, lavou-se, escovou os dentes, tapeou a barba, penteou-se, vestiu-se, calçou o tênis sem marca visível, apetrechou a parafernália de usos, abusos e costumes na mochila linchada, aliás, surrada.

Na mochila: marmita lavada e vazia, garrafa térmica com café pingado, cinto de utilidades duvidosas, óculos escuros fora de moda, lenços de papel, colírio pra enfrentar a poluição nos olhos, xarope pra rouquidão, envelope com aspirinas, cópia da cópia do CPF, guarda-chuva portátil de segunda-mão, terceira, quarta, quinta…

Também na mochila: caneta esferográfica sem tampa, bloco de rascunho sem riscos, cortador de unhas cego, digo, por amolar, chaveiro com três peças para abrir ou fechar sabe Deus o quê, duas cópias da carteira de identidade autenticadas, segunda via da carteira de trabalho, senhas codificadas pra assanhamentos, um celular de antepenúltima geração pra uso próprio e outro celular antigo, dissimulado, pra satisfazer aos assaltantes da vez.

Ainda na mochila: três contas miúdas a pagar, cento e quarenta pratas salteadas em notas dez e vinte reais, dois sanduíches de mortadela com cheiro de véspera, duas mariolas pra sobremesa e um rolo de baseado robusto pra suportar o sobe e desce do que desse e viesse na vida que leva de “dá ou desce”.

Fechou a porta do puxadinho emprestado sob a meia-água no casebre do Tio, beijou a companheira sonolenta, prometeu-lhe que um dia iriam sair dali, nem que fossem pra outro país, arrastou com o polegar o suor da testa, afagou a tatuagem do Anjo da Guarda no antebraço e se foi pela calçada esburacada.

Achegou-se ao quase inteiro meio-fio, desviou-se dos rolos de fios elétricos roubados durante a noite e à espera de quem encomendou, evitou os postes tombados pela carreta na semana passada, chutou cinco vira-latas a farejar, talvez, os seus sanduíches de mortadela, e esperou a vez de iniciar a travessia da larga avenida utilizada como rodovia, estrada, rua, trevo, passagem, ou do que a prefeitura e os banqueiros do jogo do bicho determinassem.

Enquanto isso, no seu celular, aplicativo pirateado sinalizou chegada de mensagem. Era do compadre em São Paulo: “Ô meu, já de manhãzinha tá calor aí no Rio? Pois aqui em São Paulo, mano, tá friozinho e bom pra trabalhar! Já te falei antes que o Rio é tipo muito osso pra nordestino viver…”. Ignácio, de esguelha, vislumbrou perigos adiante, atrás, do lado esquerdo, do lado direito, do lado de cima e do lado de baixo. Digitou que responderia mais tarde.

Desligou o celular e registrou na memória eletrônica do aparelho e na sua própria, neurônica, que leria a mensagem completa do compadre quando conseguisse chegar ao trabalho.

Passaram: a brisa da manhã, a fome, a sede, o sol do meio-dia, os alísios da tarde, os medos, a ansiedade, os carros papa-defuntos, os setecentos e noventa oito projéteis de vários calibres tirando fino e…

E na cabeça de Ignácio quase, quase mesmo, passou a vontade de trabalhar no horário noturno das segundas, quartas e sextas-feiras a manobrar mangueiras semiautomáticas da oficina “Lava a Jato” em carrocerias de caminhões, carretas, cegonhas, betoneiras e outras sem-vergonhices motorizadas.

Depois de dez radiopatrulhas com sirenes em alvoroço e abrindo passagem pra trinta limusines conduzindo cento e oitenta e nove políticos de trinta e três partidos distintos, democraticamente eleitos nos municípios vizinhos, passaram ainda cento e vinte e dois mil quatrocentos e vinte e cinco veículos legalizados, e oitenta mil setecentos e dezoito ônibus, vans, táxis, automóveis, caminhões, betoneiras, tratores, guindastes, cegonhas, motos, moto-táxis, reboques, carroças, papa-defuntos, caminhonetes, bicicletas, skates, burrinhos com rabo e burrinhos-sem-rabo devendo multas ou roubados, sucateados, depenados, piratas ou pirateados, mas autorizados a trafegar livremente por milicianos dominadores daqueles subúrbios.

Na cabeça de Ignácio, o presente virou passado, o passado previu o futuro, mas o presente voltou de repente. Caminhou –– abaixa daqui e dali, salta muro, pula mureta, deita assim na caçamba de lixo, deita assado no jipe depenado –– e alternou, bem treinado, períodos “de espera e se esconde” atrás de móveis, bagulhos acolchoados com talões do jogo do bicho e barris de chope vazios jogados ao léu. Percebe à frente um pivete com faca pontuda. Ignácio se esconde numa parede arriada. E espreita onze pivetes com facas rombudas, facas miúdas, facas pra tudo!

É bandido, meliante, traficante, assaltante pra todo lado, maiores e menores libertos de penas por envolvimento em delitos de ameaça, furto, dano ao patrimônio, roubo, lesão corporal, sequestro, crime hediondo, estupro e assassinato, mas legalmente ressocializados conforme códigos, estatutos, leis, instituições e justiça vigentes que, todo mundo sabe, nada disso funciona pra valer.

Caminha mais um pouco, abaixado, e vê prostituta menor por cima de drogado maior numa caçamba de lixo.

Mais à frente: milicianos armados até os dentes cariados.

Ignácio se esconde atrás de mureta esburacada por tiros de escopetas e fuzis importados via contrabando oficializado.

Ouve gemidos à beira do meio-fio: prostituta idosa, chapada, por baixo de catorze menores estupradores em fila antigamente chamada de “fila indiana”. Três quilômetros à frente, outros clamores: moradores de rua sem placa e moradores de rua sem rua a linchar ladrões amarrados em postes sem resultados do jogo do bicho colados. Sangue e lodo se juntam e, na linguagem local, “se jantam”.

Quando a noite desplugou o Sol, o Céu acendeu milhões de estrelas no quarto sem mobília, sem colônia, sem perfume, sem desodorante, sem talco nem espelho da Lua minguante. No mesmo instante, milhares de viciados em crack e em outras drogas de pés sujos pareciam reacender os vagalumes expulsos dos subúrbios pela sociedade industrial.

Finalmente, Ignácio conseguiu enxergar a passarela abalroada e estremecida que, pelo alto, cruza a avenida transformada em rodovia, estrada, rua larga, só o Governo, digo, a Prefeitura, digo, os políticos saberão.

Naquele lusco-fusco extemporâneo, Ignácio chega ao que restou da passarela castigada pela carroceria de caminhões com carga e altura superiores ao permitido e, tão rápido quanto podia, suspirando, resfolegando, subiu degraus, atravessou e desceu a rampa inclinada até pisar o outro lado da rodovia, da avenida, da estrada, da rua larga –– seu Anjo da Guarda tatuado melhor dirá.

De cara, outros desafios da travessia: saltou sem vacilo, dezoito bueiros sem tampas –– roubadas pra venda em ferros-velhos da região. Saltou ainda centenas de talões do jogo-do-bicho amontoados para distribuição aos respectivos pontos dos bicheiros.

Finalmente, ao reconhecer que vencera incólume mais uma vez o início da jornada, lembrou-se de terminar, no celular, a leitura da mensagem do compadre que vivia em São Paulo. Jurou que a leria num intervalo do trabalho, talvez numa fuga ao banheiro. Porém, antes de tudo, agradecido, beijou o Anjo da Guarda tatuado, bateu o cartão de ponto no serviço do “Lava a Jato” à beira da estrada, foi ao vestiário, trocou de roupa, vestiu o macacão, e, feliz consigo mesmo, sorriu por ter realizado mais uma vez a formidável travessia. Mal engrenou as mangueiras no “Lava a Jato”, Ignácio ligou o celular e leu o resto da mensagem do compadre:

“Ô meu! São Paulo é tipo assim outro País dentro do Brasil, entendeu? Tudo aqui é enorme, mas quase tudo funciona –– fábricas, chaminés poluentes, patrões, trânsito travado, semáforos, multas, polícia, Justiça e, claro, alguma injustiça e, parece mentira, até mesmo o clima finge mas não engana! E tem muito mais trabalho com menor risco que oficina de ‘Lava a Jato’ em subúrbio do Rio.”

“E melhor ainda, mano: tu não vais precisar tirar passaporte pra fazer a travessia da fronteira e morar em São Paulo, nem fazer câmbio com os teus caraminguás, porque o Real aqui vale em todo lugar. E vais poder tomar tipo umas brejas no fim de semana depois do fu-te-bol, ou pegar um busão pra trabalhar ou um luxo tipo moto-táxi e, com o passar do tempo, vais entender a língua tipo paulista, pois eu mesmo só destravei o palavreado daqui, no dia a dia, com os manos de São Paulo. Então, mano, até por aqui, valeu ô meu! E, por último e mais importante de tudo: tu vais precisar de muita coragem pra largar esse ‘Lava a Jato’ de operário carioca, mudar de palavrório, de horários, de sotaque, de clube de fu-te-bol, de outras manhas, enfim, de outro país dentro do mesmo país!”.

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