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Memória

Por Carlos Trigueiro

Pois é: “Recordo-me daquilo que não queria recordar: e não posso esquecer aquilo que queria.” (Cícero, 106 a.C. / 43 a.C.).  “Memória” é enigma mais antigo e cismático do que supõe a vã filosofia. Sem entrar na área da memória artificial de computadores, celulares e afins, ou seja, sem abranger nossa atualidade caótica que teima em antecipar o futuro, “Memória” seria a capacidade humana de adquirir, armazenar e recuperar informações e fatos ao longo de experiências vividas.

Esse aparato orgânico-psíquico capaz de armazenar informações e funções –– movendo milhões de células, neurotransmissores e suas conexões –– fica bem guardado no nosso organismo, ao contrário da exposição de bíceps malhados, cílios retocados, unhas pintadas, olhos puxados, “barriga de tábua”,  rugas disfarçadas, enfim, da chamada aparência “produzida”…

Aliás, só nos lembramos da existência da “Memória” quando esquecemos o nome daquela pessoa (“Meu Deus! Estou com o nome na boca…”), ou de um objeto (“Tenho a palavra aqui na ponta da língua, mas…”), ou quando esquecemos o Cartório onde temos firma registrada, ou o celular no banco do táxi, ou a senha do cartão de crédito na hora de uma compra, ou onde guardamos o Protocolo para pegar o resultado daquele exame médico, ou aquela data que já foi especial (“Como pude esquecer a data do nosso aniversário de casamento?”), enfim, esquecimentos que nos obrigam a disparar contra nós mesmos: “Mas fui esquecer logo isso?” Ou: “Onde foi mesmo que eu botei aquele troço…?”.

Então, podemos dizer que a “Memória” é a base do conhecimento. Os neurocientistas distinguem dois tipos de “Memória”: a declarativa (que armazena que algo aconteceu) e anão-declarativa (que armazena como aquilo se deu). Também explicam que a “Memória” despende muita energia mental e que, com o avanço da idade, vamos perdendo tal capacidade. Alterações químicas, doenças degenerativas, depressão grave e traumas afetam os processos de armazenamento da memória (tal perda seria a “amnésia”).

Quando ocorrem lesões nas áreas cerebrais responsáveis pela “memória declarativa”, geralmente em pessoas acima de 50 anos, surge uma forma de demência, e se essas lesões afetam outras partes do cérebro desponta a enfermidade mais comum: “Doença de Alzheimer”, com perda gradativa e constante da memória. Outros fatores também podem provocar perda de memória: alcoolismo, abuso de cocaína, derrames cerebrais, Doença de Parkinson em estágio grave, dentre tantos.

A memória declarativa ou consciente, ou memória de longo prazo é mais facilmente adquirida, porém mais fácil de perder-se (seriam os fatos, nomes, acontecimentos, etc.). Nos casos de animais que não falam, mas, claro, “lembram”, esse tipo de memória é chamado memória explícita. Não à toa dizemos: “Fulano lembra de tudo, tem memória de elefante!”.

No cérebro humano, o sistema de memória declarativa se vincula às estruturas da amídala e do hipocampo, ou seja, no lobo temporal medial. E, claro, há vários tipos dessa memória segundo a dimensão temporal: memória imediata (dura apenas frações de segundo ou alguns segundos, tal como decorar o número de um telefone); memória de curto prazo (lembrar de eventos que aconteceram há poucos minutos como, por exemplo, um acidente de automóvel ali na esquina); e a memória de longo prazo (que dura dias, meses, anos, e até, quando envolve muitos anos, ser considerada como memória de longuíssimo prazo). Mas vou deixar os leitores à vontade para rebuscarem exemplo bem antigo e marcante na memória! Que tal a data de aniversário da primeira namorada (ou namorado?).

Por outro lado, a memória não declarativa (também chamada de procedural) é a que se refere a procedimentos motores (dirigir automóvel, andar de bicicleta, digitar no teclado do computador, tocar violão, piano, enfim, um instrumento musical). Esse tipo de memória é mais estável e, ao contrário da memória declarativa, mais duradoura, inclusive porque a consciência não tem acesso a tais habilidades.

Hoje se sabe que a memória não tem um “habitat” único no cérebro. De fato, várias estruturas cerebrais atuam no armazenamento e na evocação de informações adquiridas por sistemas de aprendizagem. No entanto, ainda estamos engatinhando na complexidade da memória humana, pois há acontecimentos em nossas vidas que jamais esquecemos, enquanto outros são descartados feito lixo. Como é que o cérebro faz para estocar um fato e livrar-se de outro? Entrariam emoções no processo? A memorização de odores, por exemplo, teria o mesmo processo no cérebro do enólogo que reconhece um vinho pela intensidade do odor e a de alguém que viveu experiência marcante onde era presente determinado cheiro inesquecível?

Do ponto de vista literário, muitos escritores repassaram suas experiências vividas ou delas se valeram como instrumento de criatividade ficcional em forma de ”Memórias”, e, para citar o mínimo: “Memórias de um sargento de milícias” (Manuel Antonio de Almeida); “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis); “Memórias de Além-Túmulo” (Chateaubriand); “Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos); “Memórias de minhas putas tristes” (Gabriel Garcia Marques); “Memórias de uma moça bem-comportada” (Simone de Beauvoir); “Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar). De outra parte, escritores que utilizaram o expediente da “Memória” para obras também notáveis, preferiram dar-lhes títulos diferenciados como “Baú de Ossos” (Pedro Nava); “Confesso que vivi” (Pablo Neruda); “Recordação da casa dos mortos” (Dostoievski), e muitos outros.

Finalmente, para não incentivar o leitor a me cobrar, de “Memória”, a escalação da seleção brasileira que perdeu de 7X1 para a Alemanha em pleno “Mineirão” na Copa do Mundo de 2014, ou cobrar os nomes dos políticos nos quais votei nas últimas eleições para prefeito, deputado estadual, deputado federal e senador, retorno à sábia citação de Cícero no início desta crônica: “Recordo-me daquilo que não queria recordar e não posso esquecer aquilo que queria”. Será?

 

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