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‘O Golem de plástico’

Por Célia Musilli

Em TRANS , Maura Baiocchi recria personagem mítico e faz até os cabelos dançarem

Primeiro é preciso saber quem é Golem, o personagem mítico da cultura hebraica que veio do barro e que foi trazido à vida através de um processo mágico. O Golem inspirou a criação de outros monstros como Frankenstein, de Mary Shelley, ou o homunculus da alquimia. Golem, em hebraico, também significa “tolo”, “imbecil” e pode ser visto também como uma variação da palavra “gelem” que significa matéria-prima.

A bailarina e coreógrafa Maura Baiocchi, co-diretora da companhia Taanteatro, pega este monstro e passeia com ele através das culturas, mais que isso, o traz até a contemporaneidade para discutir o desejo e sua relação com o consumismo. Faz isso através do espetáculo TRANS, que estreou na Europa, em 2014, e teve duas apresentações no último fim de semana no Espaço Cênico O Lugar, em São Paulo.

Golem é recriado pela performer numa inquietante mutação em que o corpo é transformado incessantemente como se fosse mesmo de barro e nunca encontrasse a forma perfeita. Captar a essência corpórea desse monstro – que parece nunca estar concluído, mas sempre em processo de construção e desconstrução – é um dos pontos altos do trabalho coreográfico. É visível a “criação” do monstro nas primeiras cenas, num trabalho em que a intérprete não move apenas os membros ou os músculos, a impressão é que move fibras, nervos, células, numa composição que deixa claro seu conhecimento do corpo e o domínio dos movimentos. Feito com precisão cirúrgica, Golem vai aparecendo e, quando o espectador acha que ele está pronto, Maura Baiocchi joga sobre ele camadas não de lama, mas de plástico, ligando a ideia da escravização da sociedade contemporânea ao consumo. Abre-se desta forma o viés hipercrítico do espetáculo, linkando o consumismo à escravização que lança no mesmo fosso o criador/ comprador e suas criaturas, as mercadorias.

Sacolas de compras são o elemento com os quais a intérprete contracena: jogando-as para o público, vestindo-se com elas, alimentando-se delas com um desejo voraz de comer sacos de supermercado, de lojas finas, de magazines sofisticados, de redes populares. Todas as marcas estão ao alcance do público, para quem também são jogadas as sacolas, num espetáculo essencialmente interativo. De repente, todos estão cara a cara com Yves Saint-Laurent ou as Casas Bahia. Marcas para todos os gostos e para todos os bolsos, um conceito de relações democráticas falsificadas que se guiam mesmo é pelo poder de compra de cada indivíduo. E as condições não são iguais para todos.

A crítica se concentra em três modalidades de produtos consumidos na atualidade: as grifes de roupas, os provedores de telefonia, os produtos vendidos em bancos a clientes ávidos por um status “prime” ou “personnalité”. Trata-se da identidade trocada pelo produto. Da marca funcionando como extensão do indivíduo.

Mas a criatividade não para por aí. Para mostrar a manipulação do mercado e as relações de poder, Maura Baiocchi vale-se de outro elemento usado de forma original e absolutamente plástica: os cabelos. Assim, com a ajuda do público, desfaz as tranças com que aparece em cena, rompe a barreira dos grampos e dos elásticos, passando a utilizar a grande cabeleira como um signo a ser manipulado – em alguns momentos suas madeixas são usadas pelo público como se fossem varetas de títeres, sendo puxadas de lá para cá, como fazem os manipuladores de bonecos. Mas os cabelos também são signo da liberdade, da rebeldia, da transgressão, como nas cenas em que ela dança com pessoas da plateia, compondo quadros, cirandas frenéticas, brincadeiras de criança, movimentos que lembram a brincadeira de roda. De tudo isso, salta a mágica principal do espetáculo: uma bailarina que faz os cabelos dançarem. E se o público já viu antes intérpretes que mexem pernas e braços com maestria, tem, enfim, pela frente uma artista que criou, de forma inusitada, uma “dança dos cabelos”.

Com trilha sonora que conta com composições de Giacinto Scelsi, Dmitri Shostakovitch e Iggy Pop, o espetáculo segue crítico até o fim com o Golem, sufocado por sacos plásticos, levando alguém do público aos bastidores, com o teatro em blackout, enquanto o monstro aprisiona vítimas que vão sendo tragadas pelas marcas humoristicamente repetidas pela performer, que sai sussurrando nomes de lojas e produtos bancários.

No retorno para as cenas finais, Maura Baiocchi ainda cria momentos lúdicos como se cantasse “A Machine for Loving” (Hal Cragin, Michel Houellebecq, Iggy Pop) para afirmar que o amor é um sentimento que os cães – “essa máquina de amar” – conhecem melhor que a espécie humana. Para finalizar, chama o público para um baile, ao som da romântica Les Feuilles Mortes, de Jacques Prévert e Joseph Kosma, na voz de Iggy Pop. É o momento em que a plateia se alivia da tensão dramática proporcionada por um espetáculo altamente crítico e flutua, de rosto colado, de par em par. Com concepção, direção, figurino e trilha sonora de Maura Baiocchi, TRANS alterna momentos dramáticos, humorísticos e traz muita poesia visual. Trata-se da vitrine crítica de uma intérprete na busca incessante do valor humano.

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