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Carta de deputado estadual expõe a panela de pressão dentro do PT em São Paulo

“Amigo Adriano,

Rillo com microfone e Adriano Diogo ao lado

Há quatro anos, eu estava chegando na Assembleia Legislativa. Você já era deputado de dois mandatos, acolheu-me com dignidade e generosidade que nunca lhe faltaram à alma. No bojo, vinha sua candidatura a líder da bancada. Entre você e o outro candidato não houve propriamente uma disputa, você foi logo liquidado.

De 24 deputados, 12 eram novos e o enredo apresentado aos que não conviviam com você era “o Adriano Diogo é um grande deputado, mas é louco, não unifica a bancada, desagrega a tropa”. E por aí seguia a queimação permanente, covarde e desqualificada, que, por ausência de política e verdade, desmanchou-se facilmente no tempo e na história.

Eu sempre me identifiquei com o seu jeito e a sua forma de fazer luta política. Mas, como marinheiro de primeira viagem – pelo menos naquele universo –, achei melhor articular de maneira “responsável” e “agregadora” e garantir o meu lugar ao sol e assento na mesa de decisões.

Ouro de tolo! Com o sangue mouro dos avós, vindos do velho continente, e a convivência intensa com os sábios árabes de São Jose do Rio Preto, logo percebi que o sol era para todos, mas a sombra era para poucos. Não era aquela a mesa das grandes discussões e decisões. Naquele parlamento, e em outros também, há, no mínimo, três mesas de discussão e decisão.

A primeira mesa é a dos que estão fora do clero, que ficam soltos pelos corredores e plenário, feito seminaristas esperando ordenação.

A outra mesa é aquela em que achamos que estamos dentro, um lugar onde a sedução e a cooptação rolam soltas, perfeito para quem quer ser aceito. Um lugar onde tudo se discute e nada se decide, o Colégio de Líderes, que frequentei no primeiro ano de mandato como Líder da Minoria.

A terceira mesa é como cabeça de bacalhau, a gente sabe que existe, mas nunca vê. Essa é a mesa que decide, poderosa e ecumênica. Felizmente, camarada Diogo, nunca a frequentamos. Gente descalça não pisa em chão de esmeralda, ou melhor; em festa de jacu, inhambu não pia. Se havia uma coisa que sua presença reforçava em mim, era a firmeza de se manter do mesmo lado, sempre.

Não precisei de muito tempo para entender a lógica das mesas e dos espaços. Também não demorei em entender que você não era nada louco, irresponsável ou desagregador.

O que você sempre teve, na verdade, foi excesso de lucidez e coragem para se manter homem de esquerda. E o único espaço que alguns da nossa bancada te reservavam era o manicômio.

Passados 4 anos, meu irmão Adriano, cá estou, no isolamento manicomial. Não tão só, Neder, Américo, Lia e Auriel sempre pintam por aqui. O pior mesmo é enfrentar os rabos de arraia pelas costas, os contrabandos magistrais, escondidos em projetos “bem intencionados” vindos da terceira mesa.

O que mais me angustia é saber que o companheiro, que sempre estava trabalhando e aquecendo nossa luta, em algum lugar daquela gélida casa, não mais poderá atender aos meus chamados. Mesmo quando lotado, o plenário me imprime a sensação da solidão, como se estivesse no centro de um Maracanã cheio de ar. Sua ausência, Adriano, é um vazio abissal. Agora, quando me pegam lá fora, na saída do colégio, falta-me o irmão mais velho ao meu lado para encarar a turma.

Vivemos tempos de apreensão e sofrimento, ajustes e panelaços, censura e terror. Nada é mais triste ao militante do PT do que sair na rua e andar de cabeça baixa, de engavetar a bandeira e evitar o vermelho em dias de paradas cívicas convocadas pela Globo. O que leva uma multidão de gente digna e lutadora, como a esmagadora maioria dos militantes do PT, a andar intimidada, prostrada diante da gigantesca onda conservadora? Essa deveria ser a nossa grande preocupação. O enfrentamento com a direita e seus reacionários deveria unificar o nosso partido e a nossa base social.

Diante desse grave cenário político, incomoda-me ocupar o tempo com preocupações menores e cretinices parlamentares. A vida segue em lutas sociais, em escrachos governamentais, em greves, sangue e cães raivosos. Como diz a nossa velha amiga, a vida é mais! A luta pela liberdade será sempre mais! Mas ainda assim eu sofro, meu camarada.

A nossa estrela perdeu luz, nossas paredes se desmancham, nossa alma sangra. Um monte de gente da nossa casa parece não perceber nada e continua vivendo na ilha da fantasia, fazendo proselitismo e se esforçando para ser aceito.

Será que tem saída? Nosso otimismo leninista sempre responderá que há o que fazer, mas nossos líderes, se sabem, não nos dizem o que fazer.

E sei bem que eu, você e muitos outros, resistiremos a essa tempestade até as últimas consequências. Pode ser que a gente até apague a luz, mas sairemos pela porta da frente. Porta dos fundos é exclusiva aos ratos.

Depois do primeiro ano, te acompanhei em quase tudo na bancada, perdemos muitas vezes, vencemos algumas, mas estivemos juntos. Ainda hoje, quando querem me atacar, dizem “você vai virar um Adriano aqui dentro”. Com a alma em graça, eu me pergunto: será que serei merecedor de tal sorte?

Certa vez, ainda no começo de mandato, meu pai me perguntou sobre você e eu lhe respondi “pai, o Adriano é de longe, o melhor deputado da Assembleia. O parlamentar mais trabalhador, mais brilhante e mais genuíno com quem já convivi”. E ele resolveu te apoiar na eleição para deputado federal.

No último ano, disputamos juntos as lideranças da bancada e da minoria. Suamos, mas vencemos. Lembro-me perfeitamente da última reunião da bancada que iria a voto para decidir os líderes. Nossos adversários internos não queriam deixar votar porque sabiam que teríamos maioria. Queriam adiar mais uma vez a decisão e você, com uma genialidade cômica, os quebrou dizendo “olha, companheiros, isso aqui não pode se transformar em uma várzea, onde o árbitro só termina a partida quando o time da casa vira o jogo”.

Isso calou fundo em todos ali e, em seguida, eles retiraram as candidaturas e fomos eleitos juntos para liderar a nossa bancada, apesar das fortes pressões externas e das máquinas poderosas.

Fizemos um trabalho intenso, atento e combativo. Tivemos resultados surpreendentes, como a derrubada de oito vetos, a aprovação de projetos importantes que dialogavam com a nossa base social (a proibição do uso de bala de borracha nas manifestações e o projeto de participação social no estado de São Paulo, vetados pelo governador, mas aprovados na Assembleia), a prorrogação da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, presidida por você (a qual, algum dia ainda, o país vai ter acesso e vai reconhecer o irretocável trabalho de reconstrução de um importante pedaço da história de São Paulo, do Brasil e da esquerda brasileira, que vocês fizeram).

Vale também lembrar, Adriano, a criação e a instalação da CPI para apurar as violações de direitos humanos nas universidades de São Paulo, brilhantemente conduzida por você e seus companheiros de trabalho. Você passou os meses de dezembro, janeiro e fevereiro trabalhando intensamente e foi, sem dúvida, o trabalho investigativo mais importante da legislatura. Foi a primeira vez que a Assembleia foi notícia nacional e internacional.

Hoje, tenho a impressão de que nossa vitória interna foi como o cometa Halley, só acontece de 76 em 76 anos. As coisas mudaram muito por aqui, meu amigo. Mas não mudaram para melhor. A inversão política e ideológica, que acontecia veladamente, agora é escancarada, com o mais alto desprezo pela nossa história e pelos militantes de esquerda desse partido.

Depois de 17 anos presidindo a Comissão de Direitos Humanos, de 13 anos presidindo a Comissão de Educação e Cultura e de 4 anos à frente da Comissão de Saúde, a bancada do PT foi apeada das presidências dessas comissões. Pior: sem contestar, sem oferecer resistência. Aceitou e pronto.

Apesar de sermos a segunda maior bancada da Assembleia e de termos o segundo posto mais importante da mesa diretora, fomos rebaixados à condição de bancada de segunda classe.

A maior bancada de oposição, com acúmulo e história de atuação nas referidas comissões, silenciou-se diante de tamanha atrocidade política. A maioria dos deputados petistas está indignada com essa situação, mas impotente diante do jogo subterrâneo e invisível daquela terceira mesa sobre a qual falei, a mesa restrita e ecumênica.

Num momento em que o reacionarismo vira moda e aplaude de pé violações de direitos humanos nas mais amplas e tenebrosas formas, o PT assiste passivamente ao seu desmonte no parlamento paulista e considera normal perder a presidência da Comissão de Direitos Humanos para o PSDB.

No meio de uma greve na educação, que mais parece uma guerra desleal do PSDB contra os professores, em que os tucanos lançam mão dos mais sórdidos métodos para calar e humilhar o educador paulista, no ano em que vamos discutir na Assembleia Legislativa o Plano Estadual de Educação, a bancada do PT (com 14 deputados) abre alas para o PSD (com 4 deputados) indicar o presidente da Comissão de Educação e Cultura.

Sem falar do forte e respeitado movimento artístico e cultural, iniciado pelo então deputado estadual Vicente Cândido, que muito se apoia na Comissão de Educação e Cultura para pautar suas reivindicações e que agora terá que se dirigir ao partido do Kassab. Uma tragédia!

Dos líderes do PT na Assembleia? Nenhuma palavra. Ah, uma pequena correção: teve quem assumisse que, de fato, considerava as referidas e históricas comissões menos urgentes e importantes que a Comissão de Infraestrutura, por exemplo.

Não sei se eles repetiriam essa linha ideológica em uma plenária de professores petistas, ou em uma reunião do setorial de saúde, ou em uma plenária de artistas e militantes da cultura, que assistem ao fechamento de oficinas culturais pelo estado todo. Ou se assumiriam em uma reunião com jovens negros perseguidos pela força repressiva do governo estadual, com mulheres violentadas, com militantes do movimento LGBT, que a Comissão de Direitos Humanos é menos urgente e importante que a tão cobiçada Comissão de Transportes.

Não se tratam apenas de pontos de vistas e preferências temáticas, tratam-se principalmente de urgências. É justamente aí que repousa tranquilamente o conflito a ser discutido e desvendado. Será que essa nova linha ideológica representa a base social do nosso partido? Tenho certeza que não, por isso me revolto, querido companheiro. Por isso te escrevo com a alma transbordando decepção.

Na ausência de direção partidária estadual, resta-me a solidariedade de alguns companheiros deputados e meu direito sagrado de gritar, de compartilhar com você e com os militantes de esquerda desse partido minha indignação. Essa postura parcimoniosa e conciliadora com aqueles que querem nos destruir não me representa, amigo Adriano.

Não me conformo em sermos tão eficientes para ocupar o segundo posto da mesa diretora e compor a estrutura administrativa da casa e sermos tão passivos em aceitar o naufrágio partidário na composição da estrutura política, que deveria ser a nossa bússola orientadora – e não o contrário.

O cerco e aniquilamento se fecham sobre mim e alguns companheiros que caminharam conosco nesses últimos quatro anos. Demissões, assédios e perseguições assombram nosso ambiente de convivência. Talvez seja a hora de recuar a luta interna, mesmo sabendo que a autocrítica e o enfrentamento com os descaminhos do nosso partido se fazem necessários.

Faltam-me, porém, energia e força para continuar essa luta interna inválida, companheiro. Preciso mergulhar na luta social e me fazer presente nos ambientes de verdadeiros enfrentamentos com a direita. Aquele ambiente farsesco de situação e oposição só nos faz mal. Vou encontrar urgentemente o caminho das ruas para não desintegrar a alma. Nesse momento, essa é a minha urgência, o resto é perfumaria e cretinismo parlamentar.

Para você que sempre se comunicou e se manifestou com poesia, ofereço um trecho do pequeno grito poético de Aldir Blanc e João Bosco que expressa bem minha bombardeada posição de resistência, cultivada ao seu lado em 4 anos de companheirismo, sonho e solidariedade.

Saudades, companheiro!

Dominus dominium juros além
Todos esses anos agnus sei que sou também
Mas ovelha negra me desgarrei, o meu pastor não sabe que eu sei
Da arma oculta na sua mão

Meu profano amor eu prefiro assim
À nudez sem véus diante da Santa-Inquisição
Ah, o tribunal não recordará dos fugitivos de Shangri-Lá
O tempo vence toda a ilusão

Ê andá pa Catarandá que Deus tudo vê
Ê anda, ê ora, ê manda, ê mata, responderei não!

Carta do deputado estadual João Paulo Rillo a Adriano Diogo, do Viomundo)

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