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Pastor Elpído e uma questão delicada…

Ela chegou ao templo, aflita e com olhos marejados. Precisava conversar urgentemente com seu pastor e uma decisão delicada seria tomada com base nessa conversa. Tremeu quando soube que pastor Felicinaro estava acamado e que teria que se abrir com o jovem e desconhecido pastor Elpídio.

Elpídio foi receptivo e carinhoso, perguntando docemente o que tanto a afligia.

_Estou grávida, pastor e não posso ter este filho.

_Por quê?

_Não posso, pastor!

_Estreitamento de pelve? Não pode ter o filho por algum problema de saúde que a impeça de parir ou dar continuidade à gestação, irmã?

_Não, pastor! Sou solteira e meus pais acham que sou virgem. Também não tenho como cuidar do bebê!

_Ah, então pode ter, mas acredita que se tiver, sua vida se transformará para pior, é isso?

_Sim, pastor. Preciso abortar, mas sei que também não posso fazer isso.

_Por quê? Está sem dinheiro?

_Como, pastor?

_Está sem dinheiro para o aborto?

_O que? O pastor quer que eu aborte?

_Por que acha que eu quero? Apenas perguntei por que não pode?

_Ora bolas, pastor! Porque é aborto, Deus não permite!

_Deus, o todo poderoso? Bem, irmã, se ele não permitisse, não creio que teríamos 850 mil mulheres abortando a cada ano no Brasil. Não creio que elas o façam escondido, quando Ele esteja distraído. Parece-me que Ele deu o livre arbítrio ao ser humano e não tem impedido ninguém de abortar. Conheço mulheres que abortam e continuam suas vidas de forma produtiva, trabalhando, amando e sendo amadas.

_Está me estimulando a abortar, pastor?

_Onde? Não. Apenas disse que há mulheres que o fazem e vivem bem. Mas também há mulheres que o fazem e morrem no procedimento, ou carregam uma culpa pesadíssima. Há mulheres que não o fazem e são infelizes e há mulheres que não abortam e são realizadas. Estou dizendo que você é dona de suas decisões e das consequências delas.

_Mas no Brasil o aborto é crime, eu não posso!

_Indigentes abortam e socialites abortam. Apesar da lei, elas o tem feito. Diária e maciçamente. No mundo são mais de 40 milhões de abortos por ano, 126 mil por dia, 5 mil por hora, um e meio por segundo. Então a expressão “Não Pode” é equivocada ou hipócrita. Elas podem e estão fazendo. Desde o início de nossa conversa, pelos meus cálculos já se consumaram uns 260 abortos e ao invés de tentarmos evita-los com medidas profiláticas, fingimos que são crimes ou pecados cometidos apenas por mulheres de coração ruim.

_E você concorda com isso, pastor? Concorda com o aborto?

_Concordo que Deus tenha tido uma boa ideia ao dar o livre arbítrio ao ser humano. Daí me cabe agir e viver, por meu livre arbítrio, de acordo com minhas convicções. Pouco me acrescenta discordar do livre arbítrio alheio. Mas entendo sua pergunta. Sou particularmente contrário à prática do aborto ou de se tirar vidas de uma forma geral.

_Então me culparia se eu fizesse o aborto…

_Não. Quem é particularmente contra o aborto sou eu, não você. Entendo que há quem tenha pontos de vista diferentes. Não vejo benefício em culpar essas pessoas. Se eu decidisse me ocupar de culpá-las, estaria deixando de viver de acordo com o que acredito e direcionando minhas energias para uma algo que nem sei bem qual a função ou significado. Prefiro tentar mostrar a quem eu possa que há belos motivos para se valorizar a vida, viver e deixar viver.

Não sou sabedor dos motivos de cada pessoa e se elas nasceram com a prerrogativa de que podem tomar suas próprias decisões, quem sou eu para privá-las desse direito? Entendo que seja jovem e que tenha uma vida toda pela frente e não quero puni-la por alguma atitude impensada, muito menos desejar que, por ter se decidido pelo aborto, tenha o mesmo destino do feto.

Também não creio que eu tenha o poder de colocar culpas sobre as costas dos outros. Se eu fosse culpar as mulheres por abortarem, seriam 40 milhões de culpas por ano para que eu distribuísse e não me vejo capacitado para isso. O que eu ganharia com isso? O que as pessoas rotuladas de culpadas ganhariam? O que o mundo, na prática, tem ganhado com isso? Se eu tivesse o poder de colocar culpas, tentaria barganhá-las com Deus pelo poder de colocar amor nas pessoas.

_Mas pastor, o que me aconselha nessa situação?

_Aconselho a não fazer o aborto porque, se nosso sistema de saúde pública deixa um pouco a desejar, imagine o sistema clandestino de saúde. Você não será tratada com a dignidade que um ser humano merece, não será assistida com competência médica e a chance de você morrer no procedimento não será pequena. Talvez nunca mais possamos conversar sobre nenhum outro assunto. Como quero você viva, recomendaria que não fizesse.

_E quanto ao bebê, pastor?

_Ah, eu gostaria de vê-lo nascer, crescer e ser feliz num mundo ainda melhor do que esse de hoje. Gostaria que os bebês das outras 850 mil brasileiras que abortam anualmente também nascessem. Mas nem o fato de que eu os queira vivos, nem as pregações de outros pastores, aquelas carregadas de culpas, ameaças e pecados e nem a nossa lei proibitiva removem do ser humano a capacidade de decidir sobre seus atos. Nada disso, nem tachar injustamente as mulheres de criminosas, assassinas ou demoníacas, tem impedindo que abortos estejam sendo feitos das formas mais insalubres e desumanas possíveis.

Respeitar as diferentes formas de se encarar os fatos e promover educação e esclarecimento geram melhores frutos do que deixar de querer bem alguém que tome uma atitude diferente da que eu tomaria.

Humanos são intrinsecamente diversos. Leis injustas e inaplicáveis trazem apenas desigualdade. A socialite aborta com mais conforto do que a diarista. Pessoas com nível de instrução maior, em regra, abortam menos. Países onde o aborto é legalizado têm menores índices dessa prática.

_Então o senhor quer dizer que é favorável à descriminalização do aborto no Brasil, pastor Elpídio?

_Sim, quero.

_Mas como? Sua igreja sabe disso? O senhor não disse ser contrário a tirar vidas?

_Não sei se minha igreja sabe disso, mas ela sabe que hoje, com o aborto criminalizado, qualquer garota é capaz de sair de casa pensando: “vou ali abortar e já volto”. Aborta mesmo e muitas vezes não volta. Minha igreja também sabe que hoje perdemos muito mais vidas pelas mãos intolerantes de uma sociedade hipócrita do que pelo ato do aborto em si. Não importa se os motivos envolvidos são ou não aceitos pelos padrões sociais, os abortos ocorrem 850 mil vezes por ano em nosso país. Temos a cada ano 850 mil “criminosas” a mais em nossa sociedade. Foras da lei, executivas, procuradas, mães, discriminadas, avós, marginalizadas, atletas olímpicas… criminosas. Pra que tem servido esta lei, irmã?

Deixar de tratar a mulher que aborta como uma criminosa não irá criar uma legião de adoradoras do aborto e nem tornar a questão menos delicada. A descriminalização da prática implicaria na adoção de técnicas em que as mães morressem menos do que morrem hoje. O simples acompanhamento psicológico previamente a um procedimento tão dramático poderia reduzir sensivelmente as casuísticas do fato consumado. Menos mães desejariam interromper suas gestações se vislumbrassem para seus filhos um mundo com mais tolerância e menos ódio. Mas este é apenas o meu ponto de vista, irmã. Espero do fundo da alma que você seja muito feliz…

Ela saiu de cabeça baixa e sem dizer palavra…

Um ano mais tarde voltou. Estava feliz e trazia seu bebê no colo. Sorriu abertamente para o pastor Elpídio que retribuiu com o mesmo sorriso.

_Trouxe meu filho para batizar, pastor…

 

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