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Agnaldo, o indignado

Agnaldo seguia as pernas da mãe em meio à multidão, com olhos ingênuos e passos bambos, no instinto de buscar alguma proteção. A mãe era, desde o nascimento, o abrigo seguro contra o frio, a fome e o medo e ele já a entendia como uma beleza adorável e necessária.

A mãe só percebeu algo preocupante em Agnaldo no dia em que o garoto deixou de olhar para seus pés e ergueu a cabeça acima do grupo para observar a alta montanha que ornava a planície. Ninguém fazia aquilo, todos andavam com a cara rente ao chão, de olho nos passos dos líderes e prontos para acompanhar suas decisões, correndo para onde fossem.

O tempo segue sua linha e Agnaldo se desenvolve rapidamente, sentindo-se cada vez mais apto a enfrentar o mundo longe dos cuidados maternos. Ele percebe que seguir os passos dos líderes e viver conforme as regras do grupo era útil para a sobrevivência e que a união tornava a sociedade mais forte do que o indivíduo, mas não impedia que cedo ou tarde, todos viessem a sofrer e morrer.

Agnaldo, curioso, passou a fazer caminhadas ocasionais até o topo da montanha e imaginava, de dentro de sua rara solidão, qual seria o tamanho daquele mundo que ele via lá de cima, tão maior do que território onde vivia. Para que serviriam as partes mais longínquas, se não para que ele se aventurasse por lá? Entretanto ele aprendera que o mundo era um lugar perigoso e os momentos de solidão traziam o medo do desconhecido. Estar consigo próprio era uma coisa muito desconhecida para quem vivia no seio de uma manada e era natural que ele sentisse receio, então logo descia e se juntava novamente ao grupo.

Mas o tempo passado na montanha passou a ser mais agradável que o tempo junto da multidão.

Do alto da montanha, acompanhava a rotina da manada. Nascimentos, correrias, romances, correrias, luta, morte. Viu a morte de líderes poderosos traídos pelo descuido. Outros líderes envelheciam e morriam como refugos, deprimidos pela perda do poder que já tiveram. Via que, na correria para encontrar água, uma boa pastagem ou fugir de algum perigo, membros do seu grupo eram pisoteados e deixados pra trás para que morressem sem atrapalhar o andamento da marcha.

Agnaldo, lá da montanha, percebeu que muitas vezes o simples estalar de um graveto era motivo para líderes experientes entrarem em pânico e empreenderem uma disparada sem porque. Mas gnus eram assim, fugiam de um inimigo inexistente e sentiam o temor de um medo imaginário. No estouro da manada, atropelavam-se, escoiceavam, chifravam, caiam de ribanceiras e se matavam tentando se livrar de um perigo inventado.

Do alto da montanha ele notou que apesar de sozinho e inseguro, nada de ruim acontecia a ele quando a manada estourava. Notou também que alguns membros que se encontravam à margem da manada no momento do estouro, não percebiam o reboliço e continuavam mastigando seu capim tranquilamente e nada de ruim acontecia a eles. Viu um dia, do alto da montanha, sua velha mãe correr desesperada, cheia de medo no olhar, fraquejar, cair e ser pisoteada e morta por incontáveis gnus, que minutos mais tarde se acalmavam e voltavam a ruminar, já esquecidos da velha matriarca. Mas gnus são bestas selvagens e esse comportamento de manada é esperado.

Agnaldo se tornou um gnu indignado. Entendia claramente a importância da coletividade, mas passou a questionar: quais seriam os benefícios de um gnu viver com medo de coisas que não eram feitas para dar medo? E de seguir líderes que corriam desesperados pensando apenas em salvar a si próprios. Talvez, por viverem sempre preocupados em não morrer e alucinados pelo medo, tenham se esquecido de viver, de olhar a montanha, de ver de cima como o rio era longo e tortuoso e como havia água para todos, talvez tenham se privado de entender o comportamento dos predadores e de respirar com mais calma.

Agnaldo passou a frequentar o topo da montanha por mais e mais tempo. Passou a excursionar por outras paragens sem ter medo. Não abandonou a manada, mas procurava evitar as grandes aglomerações, o ritmo alucinante e os estouros que bloqueavam os pensamentos. Sabia que estando mais à margem, também corria o risco de morrer, mas quando acontecesse, seria de uma forma diferente daquelas mortes pisoteadas. E o melhor, não corria o risco de matar ninguém pisando em cima.

Ele entendeu que quem estivesse no interior do estouro, nada podia fazer a não ser correr e torcer para não ser atropelado. Não era permitido e nem seguro parar para pensar, relaxar, sentir a vida que havia naquele mundo grande e cheio de belezas que o comportamento de manada tornava pequeno como uma cela de prisão.

A não ser que se indignassem e migrassem para as margens, continuariam prisioneiros do ritmo da manada. Era difícil, pois exigia pensamento coerente, coragem e vontade de mudar, atributos muito raros nos gnus.

Do alto da montanha Agnaldo acompanhava também a vida de outras espécies e podia aprender algo sobre seu comportamento. Vendo bem de longe, ficou intrigado com uma espécie interessante, que sabia pensar e que construía maquinas e edifícios, diferente das bestas selvagens, mas que se via ainda presa ao mesmo comportamento. Eles tinham medo de se conhecer profundamente e viviam sempre no estouro da manada. Viviam arrebanhados, seguindo líderes questionáveis sem questionar. Corriam alucinados atrás de tesouros de mentira, porque um dia um líder disse que era esse o sentido da vida. Temiam perigos inexistentes porque um dia um líder aprendeu a dominá-los pelo medo. Seus líderes se enfrentavam e se destruíam pela vaidade de poder conduzir rebanhos e pelos benefícios que eles enxergavam nisso, mas Agnaldo já entendia que líderes também se iludem. Nessa espécie também havia indignados que buscavam as margens e as montanhas.

Agnaldo percebeu que ter ido à montanha e se destacado da manada fazia dele um gnu diferente, mas não se sentiu culpado por fugir ao padrão, já que gnus nunca aprenderam que fugir aos padrões fosse pecado. Também não se sentia melhor do que os outros gnus, mas se sentia bem. Quis que todos os gnus sentissem algo parecido, para que a espécie, um dia, pudesse ter um semblante menos triste.  Mas diziam a ele que gnus eram assim mesmo, agem por instinto e não pensam e que seria assim para sempre. Podia ser verdade, mas Agnaldo preferia muito mais viver feliz, acreditando no seu sonho, do que triste, matando e correndo de medo.

Agnaldo, o gnu indignado, ainda nos observa lá do alto da montanha. Decidiu permanecer por lá, aprendendo conosco até ficar bem velhinho e… não morrer nunca, porque a utopia não morre.

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